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PHOENIX, EUA (FOLHAPRESS) - Karen Keilt desconfiava, mas o acesso a documentos que indicam que seu pai trabalhava para a CIA, agência de inteligência dos Estados Unidos, veio somente quando ela já planejava escrever suas memórias.
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A brasileira de 66 anos encontrou em 2014 fotos e arquivos que apontam que o pai, Frederic Birchal Raborg, trabalhou para divisões da inteligência americana e esteve em encontros com generais que comandaram o Brasil durante a ditadura, como Ernesto Geisel (1974-1979) e João Figueiredo (1979-1985).
"Todos os meus piores pesadelos estavam confirmados", escreveu Karen em "The Parrot's Perch" -ou o pau de arara, instrumento usado para torturas-, livro sem tradução para o português.
Após 40 anos vivendo nos EUA, Karen participou no dia 15 de junho, em Phoenix, de uma conversa com leitores na qual falou pela primeira vez em público sobre a possibilidade de seu pai ter sido o motivo de sua prisão. Uma das hipóteses aventadas pela escritora é que Raborg tenha roubado dinheiro da CIA que deveria ter sido repassado ao governo.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, ela deu detalhes dos 45 dias em que foi torturada e estuprada nos porões do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), em São Paulo.
Morto em 1996, o pai de Karen nunca respondeu às perguntas da filha.Pergunta - No livro, a sra. conta a história de sua prisão , em 1976. Por que decidiu escrever sobre isso 43 anos depois?
KK - Em 2010, eu tinha escrito uma versão da história com elementos de ficção, porque achei que precisava colocar para fora tudo o que tinha acontecido, mas tinha medo de usar nomes verdadeiros e sofrer retaliação.
Naquele ano, Dilma Rousseff foi eleita presidente e pensei que, como ela era mulher e tinha sido torturada, faria algo para acabar com a violação dos direitos humanos no Brasil. Mandei o livro para ela, junto com uma carta dizendo que a história era verdadeira. Para ela e para o Barack Obama [ex-presidente dos EUA]. Ela nunca me respondeu.
O Obama, sim, respondeu e disse que gostaria de melhorar as relações com o Brasil e ajudar o país com o tema de direitos humanos. Depois, veio a Comissão Nacional da Verdade, para a qual depus em 2013. Então pensei: agora vou falar para que isso não se repita, e comecei a escrever as memórias em 2015.
Como foram os 45 dias em que passou na prisão em São Paulo?
KK - A coisa mais horrorosa que eu poderia imaginar. Virou realidade na noite em que eles entraram na minha casa e tiraram eu e meu marido da cama. Eram cinco homens. Eles falaram que eram policiais, e eu gritei que não eram, que eram ladrões, mas aí um deles colocou um revólver na minha testa e falou: "você acredita agora que somos da polícia?"
O que eles alegavam? Vocês foram levados para onde?
KK - Para o Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), em São Paulo. Eu pedia pelo amor de Deus, dizia que meu pai pagaria o que eles quisessem, mas eles respondiam que a gente não tinha mais condições [de pagar]. Eles alegavam tráfico de drogas [o que Karen nega].
Meu marido disse que, se a gente tivesse dado dinheiro, eles teriam nos levado do mesmo jeito. Ficamos horas num escritório. Eles entravam e saíam, gritavam com a gente, pediam que falássemos a verdade sobre as drogas. Depois que eles tiraram nossa foto, com nome e data, nos levaram para o andar debaixo.Gritei, chutei, achei que fosse morrer. Meu marido pediu para que ficássemos juntos. Nós ficamos no chão. Estava muito frio. Eu disse que não poderíamos dormir, porque achei que eles iam matar a gente. Eles não nos deixavam ir ao banheiro ou comer.
No meio da noite, acho que meu marido dormiu e um policial me pegou e disse que, se eu fizesse qualquer barulho, ele ia matar meu marido. E me levou para a parte de trás da sala e me estuprou.
Como isso aconteceu?
KK - Ele [o policial] me levou, me fez tirar a roupa e ficou com uma faca no meu pescoço, e depois me jogou numa cela com outras mulheres, onde fiquei o resto do tempo. Só vi meu marido de novo umas três ou quatro vezes, quando eles levaram a gente para outra sala para interrogar sobre as drogas.
A gente sempre negou. Pedimos para usar o banheiro e eles deram uma garrafa de refrigerante [para que a gente fizesse as necessidades dentro dela]. Nesse dia, levaram meu marido para uma porta no fim da sala e eu ouvi ele gritando e, quando saiu, ele estava desmaiado. Aí eles me levaram e foi a primeira vez que me amarraram no pau de arara, usaram choque elétrico, me davam pancadas.
Você comia e dormia na cela em que condições?
KK - Tinha comida. Não me lembro se às vezes eu comia, acho que sim. Não tinha água, mas uma torneirinha da qual saíam pingos de água e eu tomava ali. Dormia no chão. Passei todos os dias com a mesma roupa, não tinha banheiro, era um buraco no chão. Tive hemorragia e fui levada para o hospital, me fizeram transfusão de sangue, fui e voltei algemada. No dia seguinte, fomos liberados.
No depoimento que concedeu à Comissão Nacional da Verdade, em 2013, a sra. disse que nunca atuou politicamente e que desconfiava que seu pai trabalhava para a CIA. Ele foi a razão de sua prisão?
KK - Sim, acho que ele foi a razão da minha prisão. Quando comecei a fazer pesquisas para o livro, pedi para todos os amigos e familiares documentos que pudessem provar [que meu pai trabalhava para a CIA], e perguntei ao governo dos EUA, usando o Foia (Freedom of Information Act, lei de acesso à informação americana).
O que a CIA respondeu?
KK - "Por motivos de segurança nacional, não podemos confirmar nem negar". Para mim, isso é um grande sim.
A primeira vez que ouviu falar que seu pai poderia ser da CIA foi no dia em que saiu da prisão, quando seu irmão disse que eles iriam matar quem tinha feito aquilo com você, pois seu pai era da inteligência americana.
KK - Sim, mas não acreditei. Muitos anos depois, já nos EUA, ele [meu irmão] falou outra vez [que meu pai era da CIA], depois que meu pai tinha morrido.
De tudo o que teve acesso com a Comissão da Verdade e documentos pesquisados nos EUA, o que é possível dizer sobre a atuação do seu pai na ditadura do Brasil?
KK - Tenho documentos que dizem que ele trabalhou na CIA de 1955 a 1975. São vários documentos e fotos do meu pai como membro ainda da Bomid (Branch Office Military Intelligence Division), órgão de inteligência dos EUA anterior à CIA.
Não sei quando meu pai entrou na Bomid, mas a maioria das fotos que tenho mostra ele em 1945, época em que começou a ter interações com os militares do Brasil, incluindo Figueiredo, Faria Lima e Ernesto Geisel.
Por quase 40 anos, a sra. achou que foi presa por causa de dinheiro, já que foram pagos US$ 400 mil que estavam em uma conta na Suíça para sua liberação. Como você sabe que o pagamento foi feito?
KK - Meu pai falou para mim, mas nunca explicou como fez.
Ele era funcionário da Ford. Como tinha US$ 400 mil em uma conta fora do país?
KK - Foi muito estranho, mas eu era ingênua. Só depois me questionei.
Seus pais e seu irmão falavam para você deixar a história de lado.
KK - Sim, nunca falamos sobre isso. Quando eu fazia perguntas, minha mãe falava: "não precisa falar disso, seu pai vai ficar furioso, você tem que esquecer o que aconteceu e andar para frente".
Antes de seu pai morrer, em 1996, você pediu que ele contasse os motivos da sua prisão. Ele não falou?
KK - Ele teve um infarto e ficou três dias no hospital. Perguntei por que aconteceu aquilo e ele disse: "nunca vou falar sobre isso". No dia seguinte, morreu. Quando avisei minha mãe, ela não teve muita reação. Ela morreu quase um ano depois e me disse que aquele ano foi o melhor da vida dela. Sem ele.
Acha que seu pai sabia por que você tinha sido presa?
KK - Acho que sim, caso contrário, ele teria me explicado, negado.
O que ainda falta descobrir?
KK - Se realmente meu pai foi a causa do que aconteceu comigo. Às vezes imagino que o dinheiro na conta da Suíça era da CIA para pagar alguma coisa do governo brasileiro e meu pai roubou. Não tinha como meu pai ter esse dinheiro. A conta estava no nome do meu pai e, quando ele morreu, foi para o nome da minha mãe e do meu irmão.
O que a fez fugir para os EUA em 1979 e qual foi o impacto disso tudo na sua vida aqui?
KK - Meu marido estava bebendo muito depois que fomos soltos. A gente não estava se dando bem, ele estava tendo casos [fora do casamento]. Eu tentei me matar, tomei remédios e me joguei na piscina, e minha família me internou.
Quando saí, continuaram dizendo que eu precisava esquecer o que tinha passado. Peguei meu filho de um ano e meio e vim para os EUA. Trabalhei como garçonete, comecei a beber, usar drogas, dormia com qualquer um porque achava que eu não tinha valor. Para mim, minha vida tinha acabado. Aí conheci meu atual marido e, quando meu filho tinha 9 anos, a gente se casou e as coisas melhoraram.
Você já tinha contado para o seu atual marido e seu filho [hoje com 42 anos] detalhes da sua história?
KK - Para o meu marido, só depois de quatro anos de namoro. Para o meu filho, não, e ele ainda não leu o meu livro.