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Desigualdade racial no Brasil começa no útero

Mulheres pretas e pardas respondem por 65% das mortes maternas

Desigualdade racial no Brasil começa no útero
Notícias ao Minuto Brasil

08:32 - 20/11/20 por Folhapress

Brasil Pais

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um bebê negro já tem risco maior de morte em relação a uma criança branca antes mesmo do seu nascimento. Mulheres pretas e pardas respondem por 65% das mortes maternas, aquelas que ocorrem na gestação ou nos 42 dias após o parto. Muitas vezes, com elas, vão junto os seus filhos.

Ainda que os esforços na prevenção e cuidado das gestantes e dos recém-nascidos tenham sido ampliados nas últimas décadas, permanecem as disparidades de acesso ao pré-natal entre gestantes negras e brancas.

Segundo dados preliminares do Ministério da Saúde, em 2019, 81% das gestantes brancas realizaram, no mínimo, sete consultas de pré-natal. Entre as negras, a taxa é de 68,1%.

"Como as mães têm menos menos acesso ao pré-natal e não recebem tratamento correto, crianças negras têm mais sífilis congênita, por exemplo", diz a médica Denize Ornellas, membro do Grupo de Trabalho da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.

Até um ano de vida, crianças negras terão 22,5% a mais de chance de morrer em comparação às brancas. A taxa de mortalidade infantil é 13,98 por mil nascidos vivos entre os negros e 11,41 entre os brancos.

Segundo levantamento da Fundação Abrinq, 70% da mortes de bebês negros até um ano são por causas evitáveis, como diarreias e pneumonias. Nas crianças brancas, a taxa é de 62%.
Ano passado, 12.428 crianças negras morreram nessas condições contra 8.510 brancas. Os números compilados pela entidade em 2019 são ainda preliminares.

Para Victor Graça, gerente-executivo da Fundação Abrinq, os dados indicam o desequilíbrio de acesso das crianças negras às medidas de prevenção e cuidado.

"Uma desigualdade vai levando a outra. Os negros têm menor renda, e, quanto menor a renda, maior o risco de desnutrição, de acesso a saneamento, à saúde."

Os estudos da Fundação Abrinq mostram que, quando selecionadas as crianças negras e brancas de até 14 anos de idade que têm renda domiciliar mensal per capita de até meio salário mínimo, as negras permanecem sendo as que estão em condições domiciliares mais precárias: 9,9% não possuem banheiros em casa, por exemplo.

A disparidade também se manifesta no peso das crianças ao nascer: 5,4% dos bebês negros nascem abaixo do peso esperado enquanto entre os brancos a taxa é de 3%.

"As políticas públicas precisam fazer uma busca ativa dessas crianças, criar redes de vigilância. Não dá para esperar só no posto de saúde. Muitas pessoas não têm recursos nem para pegar um ônibus até o posto", reforça Graça.

Denize Ornellas lembra que o tempo de amamentação da mulher negra também tende a ser menor que o das brancas, o que traz impacto à saúde do bebê. "Elas estão mais no mercado de trabalho informal e têm dificuldade de ter licença-maternidade."

Os efeitos das disparidades só vão se acumulando. "As mães negras têm mais dificuldade de encontrar vagas em creches. Se crianças ficam mais tempo fora da escola na primeira infância, serão menos estimuladas e isso prejudica o desenvolvimento."

O impacto da violência na saúde física e mental das crianças negras é outro tema que preocupa os médicos de família. "Essas crianças são expostas a conteúdos violentos muito cedo", diz Ornellas.

Na avaliação de Thomas Hone, pesquisador do Imperial College de Londres e que estuda a atenção primária no Brasil, o papel dos serviços de saúde nas disparidades raciais ainda é pouco estudado no país. Mas, segundo ele, filhos de negros estão em desvantagem por causa de um status socioeconômico mais baixo e da discriminação racial contínua que sofrem.

"Crianças negras são mais dependentes da atenção primária e dos serviços públicos de saúde para atender às suas necessidades."

Segundo a médica Fátima Marinho, pesquisadora sênior da Vital Strategies e professora de saúde pública da UFMG"(Universidade Federal de Minas Gerais), o corte de verbas e de equipes de saúde da família que vem ocorrendo na atenção primária à saúde pode aumentar ainda mais essas disparidades na saúde das crianças negras.

"O Mais Médicos era um programa que havia se juntado ao saúde da família e conseguiu chegar em áreas muito pobres, mais desassistidas. E é justamente onde está essa população preta e parda."

Ela lembra que o corte no programa Bolsa Família também tende a piorar os indicadores da saúde da criança negra. "Nesse momento a gente deveria reforçar as políticas sociais para minimizar o impacto da crise econômica no povo mais pobre."

O ESF (Estratégia Saúde da Família) tem contribuído para a redução da mortalidade infantil, segundo o estudo do Núcleo Ciência pela Infância, integrado pela Fundação Bernard van Leer, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Insper, Faculdade de Medicina da USP e Universidade Harvard.

A pesquisa identificou que a presença de uma equipe de ESF nos municípios é capaz de produzir uma queda gradual na taxa de mortes infantis a partir do segundo ano de atuação dos profissionais, variando de 3% a 9%.

No terceiro ano de atendimento, a diminuição fica entre 6,7% e 14%, sendo ampliada para uma média que varia entre 20% e 34% no oitavo ano.

Além da ampliação do acesso aos serviços de saúde, Denize Ornellas defende que a educação médica também precisa mudar para que o cuidado à saúde das famílias negras seja aperfeiçoado.

"Precisamos falar sobre como fazer a abordagem de uma família sobre o conteúdo racial quando a criança está na barriga e depois quando nasce. Como preparar essa criança para o racismo que ela vai sofrer?"

Abortos também matam mais entre mulheres negras

São Paulo"Embora faltem dados sobre aborto no Brasil e não haja nos sistemas de saúde qualquer informação sobre aborto inseguro, os riscos do procedimento no país são maiores para pretas, pardas e pobres, que estudaram pouco.

Os dados disponíveis se restringem aos óbitos por aborto e às internações por complicações de aborto no serviço público de saúde. E são as negras, inclusive as meninas, as que mais morrem ao tentar interromper uma gravidez.

Enquanto entre mulheres brancas a taxa é de 3 óbitos causados por aborto a cada 100 mil nascidos vivos, entre as negras esse número sobe para 5. Para as que completaram até o ensino fundamental, o índice é de 8,5, quase o dobro da média geral de 4,5.

Segundo o IBGE, o índice de aborto provocado das mulheres pretas é de 3,5%, o dobro do percentual entre as brancas (1,7%). O perfil mais comum de mulher que recorre ao aborto é o de uma jovem de até 19 anos, negra e já com filhos, segundo o estudo nacional.

Elas também têm mais dificuldade de conseguir atendimento no primeiro hospital ou maternidade que procuram, têm menos acesso a anestesia durante o parto normal (16% das que tiveram acesso eram negras, já entre as brancas sobre para 22%), e morrem mais em decorrência da gestação (53% contra 41%).

Os números do Ministério da Saúde mostram ainda que, enquanto o número de casos de mortalidade materna (óbitos durante e logo após a gestação e inclui abortos) cai entre as mulheres brancas, ele sobe entre as negras. TP

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