Garimpo da fome na periferia de SP tem peregrinação por doações e busca de comida no lixo
Na periferia de São Paulo, sem renda e com o recrudescimento da pandemia, muitas famílias passaram a garimpar comida por aí, seja indo atrás de doações de entidades e vizinhos e até procurando no lixo
© Reuters / Nacho Doce
Brasil Coronavírus
Cercada de moscas, Marli Oliveira Gama, 54, revira uma caçamba de lixo, no Jardim São Norberto, região de Parelheiros (extremo sul de SP).
Ela dá alguns restos de comida para seu cão, enquanto tenta encontrar qualquer coisa que possa aproveitar. De útil, só encontrou duas latinhas de cerveja na última quinta (8) -para ganhar R$ 3 com venda de alumínio, precisaria de mais cerca de 60.
Também não encontrou nada para comer ali. Conforme a pandemia foi se estendendo, a situação piorou em casa e ela passou a aproveitar alimentos que encontra no lixo.
Na periferia de São Paulo, sem renda e com o recrudescimento da pandemia, muitas famílias passaram a garimpar comida por aí, seja indo atrás de doações de entidades e vizinhos e até procurando no lixo.
"Eu já peguei pão para os meus filhos comerem, não tinha nada nem para o café nesse dia, tem uns tempinhos aí para trás. Às vezes, jogam algo que a gente vê que dá [para comer]", diz. "Eu tenho uma menina em casa que tá com meus três netos. Essa semana mesmo achei umas bolachas aí, nós comemos, a vida está difícil".
Marli brinca que já levou para casa diversas coisas que achou e não morreu ainda. "Às vezes jogam feijão cru, no saquinho, eu pego. Eu ponho de molho, a gente cozinha, ainda não morremos, não", ri. "Às vezes eles jogam frango, coxa, põem num saquinho, congelado. Eu pego, fervento, cozinho".
Ela diz que costuma ferver e usar vinagre para limpar os alimentos que aproveita. Quando chega em casa, esquenta tudo num fogão a lenha, porque também não tem dinheiro para comprar gás.
A incerteza sobre o que haverá para comer é parte permanente do cardápio. "No dia que dá certo a gente compra o arroz e o feijão e come. No dia que não dá certo vai vivendo como Deus permite".
No bairro vizinho, o Jardim Papai Noel, Maria de Loudes dos Anjos Pereira, 58, responsável por uma associação de moradores que distribui comida e mantimentos, diz que também há casos de pessoas que buscam nas caçambas restos para comer.
Quando há alimentos disponíveis para doar, longas filas crescem na porta da entidade gerida por Maria de Lourdes e sua família. A peregrinação por alimento inclui gente vinda de outros bairros, após a informação ser repassada em grupos de WhatsApp.
No entanto, segundo ela, as remessas de alimentos doados têm rareado cada vez mais. "Está pior que no começo da pandemia", ela diz.
Diferentemente do centro de São Paulo, onde muitos grupos se reúnem para distribuir comidas e doações, a fome na periferia é muitas vezes invisível. E os Jardins Papai Noel e São Norberto ficam a cerca de 40 quilômetros da praça da Sé, um ponto de referência tanto para pessoas que doam quanto para as que buscam uma marmita.
Conforme dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), a fome atingiu 19 milhões de brasileiros na pandemia em 2020.
Eles estão entre as 116,8 milhões de pessoas que conviveram com algum grau de insegurança alimentar no Brasil nos últimos meses do ano, o que corresponde a 55,2% dos domicílios.
Com vários meses sem auxílio emergencial, em São Paulo, algumas famílias têm como renda apenas auxílios de alimentação repassados pela prefeitura ou pelo governo estadual.
Mãe de um menino de dois anos, Franciele Alves da Silva, 22, recebe apenas os R$ 100 dados pela prefeitura como ajuda para alimentação de alunos. O dinheiro, diz ela, dá para comprar apenas fralda e leite.
Franciele trabalhava como cuidadora de crianças, mas está parada desde o começo da pandemia. Ela conta com ajuda dos pais para sobreviver, mas afirma não ter como escapar do fato de que a dieta do filho é muito diferente do que já foi. "O que falta mais é fruta", diz ela.
Segundo ela, o menino, por sua vez, sente falta de alguns tipos de alimentos que geralmente são dados nas escolas. "O que ele mais pede é danone", afirma.
As famílias têm sobrevivido por meio de meio de uma rede de contatos com entidades e solidariedade entre vizinhos.
"É um ajudando o outro. Se falta uma coisa, ela bate aqui, outra bate lá e assim a gente vai. Tem igrejas que ajudam, na medida do possível", diz a pensionista Gisele Martins, 42.
Mãe de dois filhos, ela está desempregada, em tratamento de hepatite C. Na casa dela, a alimentação também costuma se resumir na maioria do tempo a arroz com feijão, sem vegetais ou qualquer proteína.
Já Rosângela da Silva, 38, sofreu mais no começo da pandemia, quando vendia balas no semáforo e vivia com a geladeira vazia. Mãe de cinco filhos menores de idade, o mais novo hoje com quatro anos, ela tem recebido valores relacionados a benefícios de alimentação dado pelas escolas, o que ajudou um pouco na melhoria da dieta.
A reportagem mostrou a história de Rosângela há um ano, na série Fome na Pandemia. Na ocasião, após sua história ser contada, ela recebeu diversas doações.
Meses depois, ela ganhou também uma casa de pessoas que se sensibilizaram com a situação. "Perguntaram que cor eu queria. Eu disse: quero azul da cor do céu", diz ela, sentada em frente à construção, feita no mesmo terreno em que morava.
Apesar de a situação ter melhorado um pouco, ela ainda precisa continuar recolhendo materiais recicláveis para vender. "Tem que continuar trabalhando, senão... ", diz Rosângela.
Com carrinho de mão, ela circula pelas ruas de terra do bairro e arredores, dividindo espaço com carros a cavalos. Pelo caminho, encontra cada vez mais gente precisando de ajuda e menos pessoas querendo ajudar.
"Até o pessoal que dava ferro hoje está vendendo ferro, porque a coisa tá feia", diz.COMO AJUDAR
Associação Unidos Comunitária do Jardim Papai Noel - 11-98896-0950 (WhatsApp) ou 11-5921-3994, com Ellen ou Maria de Lourdes