Boate Kiss não deveria ter sido aberta, diz ex-sócio réu por homicídio
A tese do dolo, que indica crime intencional, levou o caso a júri popular e é um dos pontos centrais em discussão
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Justiça BOATE-KISS
PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) - Em novembro deste ano, Elissandro Callegaro Spohr, ex-sócio-proprietário da boate Kiss, local da tragédia que deixou 242 mortos na cidade gaúcha de Santa Maria, lançou um documentário em que conversa com seu advogado sobre a vida antes e depois de 27 de janeiro de 2013.
O próprio Spohr diz que a publicação do filme "Kiko da Boate Kiss" foi pensada pela proximidade do tribunal do júri que julgará ele e outros três réus pelo caso, a partir desta quarta-feira (1º), em Porto Alegre.
"As pessoas precisam entender que, para mim, também não é uma coisa fácil, só se tem o que a mídia bota", disse Spohr à Folha de S.Paulo. "Eu preciso botar a minha versão. Eu só escutei até agora. É estratégia da defesa, para que as pessoas vejam que existe um ser humano."
Os demais réus falaram por meio de seus advogados.
Além de Spohr, são acusados pelos crimes de homicídio simples e tentativa de homicídio simples por dolo eventual o outro ex-sócio da boate Mauro Londero Hoffmann, o então vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e o produtor e auxiliar de palco do grupo musical Luciano Bonilha Leão.
A tese do dolo, que indica crime intencional, levou o caso a júri popular e é um dos pontos centrais em discussão. Enquanto os advogados dos quatro réus sustentam que nenhum deles poderia prever a tragédia, o Ministério Público do Rio Grande do Sul afirma ter certeza do dolo.
"Temos várias instâncias do próprio Poder Judiciário dizendo que a tese do homicídio doloso é viável. Temos um dos principais tribunais da República, que é técnico, o STJ (Superior Tribunal de Justiça), dizendo que é viável", afirmou em entrevista a jornalistas, em 17 de novembro, um dos promotores do caso, David Medina da Silva.
"Foi dolo das pessoas encarregadas de cuidar de quem estava lá dentro", disse ele.
"Esse caso deveria ter sido julgado pelo juiz de direito desde o início. Não é um caso de dolo eventual. O Ministério Público forçou essa interpretação para mandar esses quatro a júri. Esse caso já estaria julgado, essas pessoas já estariam cumprindo pena, caso tivessem sido condenadas, não precisaríamos esperar quase nove anos", avalia o advogado de Spohr, Jader Marques.
Em 2017, desembargadores do Tribunal de Justiça gaúcho conservaram o entendimento do dolo eventual, mantendo o caso no Tribunal do Júri, mas excluíram as qualificadoras dos crimes de homicídio – fogo, asfixia e torpeza.
"Infelizmente só podemos levar a julgamento por homicídio simples, que não era o objetivo do MP. Lamento, mas que sejam assim condenados, que saiam do julgamento presos, os quatro", declarou a outra promotora do caso, Lúcia Helena de Lima Callegari.
As quatro defesas questionam ainda o fato de que apenas os quatro réus responderão em júri e a ausência de entes públicos, que apareceram no indiciamento da Polícia Civil gaúcha.
Spohr conta que houve um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) entre a Promotoria e a gestão anterior à dele, devido a reclamações por barulho, e outro quando a boate já estava em suas mãos – o caso, então, ficou com o promotor Ricardo Lozza. O prédio tinha as paredes laterais encostadas em dois prédios e, ao fundo, a outro edifício residencial.
Ele explica que fez reformas na casa, construindo paredes de pedra para tentar parar o vazamento de ruído, mas as reclamações continuaram, levando à adoção da espuma para tentar uma solucionar.
"Hoje, eu penso que qualquer balada não pode ser num centro de uma cidade. Não tem como, vai vazar som, vai incomodar.
A Kiss não deveria ter aberto nem lá atrás. Se lá atrás, nesse primeiro TAC, tivessem fechado, eu não era dono de boate, não estava nessa situação. Se eu tivesse vendido para um primo, um amigo, ele estaria nessa situação hoje", diz.
A defesa do sócio dele afirma que Mauro Hoffmann era um investidor. Ele entrou como sócio no final de 2011, quando a Promotoria começou a cobrar Spohr por uma solução para a poluição sonora, e só voltou a pagar as parcelas do negócio no início do ano seguinte, perto da conclusão das obras.
"Quando ele adquiriu a boate, checou e verificou todas as questões documentais e estavam ok. Se há algum problema, seja por ter uma porta só, saída, isso ou aquilo, essas questões foram todas vistoriadas pelos órgãos públicos", afirma o advogado Bruno Seligman de Menezes.
Seligman diz que espera um julgamento propositivo em questões técnicas. "Não descuidamos de toda a questão emocional envolvida, mas precisamos levar ao plenário as discussões penais. Acreditamos que será reconhecido que o Mauro não tinha participação alguma nas definições dos rumos da boate Kiss."
Os advogados que defendem os então integrantes da banda, os réus Marcelo e Luciano, alegam que os clientes acreditavam que a boate era um local seguro, assim como o artefato, que já havia sido usado por eles em apresentações anteriores.
Luciano queria ser julgado em Santa Maria e chegou a ter o júri marcado para o ano passado, segundo seu advogado, Jean Severo. Ele é o único dos réus que não terá testemunhas, porque a defesa anterior perdeu o prazo, de acordo com a atual.
O advogado afirma que ele foi à loja comprar o artefato que entregou a Marcelo, seguindo recomendações feitas anteriormente por Danilo, gaiteiro e apontado pelas duas defesas como o responsável pelas decisões do grupo -ele morreu na tragédia.
"A gente ainda não tem certeza se foi aquela situação do Marcelo [acender o sinalizador] que deu causa ao incêndio, eu tenho dúvidas", diz Severo. Ele alega que o fogo poderia ter sido iniciado pelas chamadas chuvas de prata, espécie de artefato que solta faíscas, que eram levados por garçons a aniversariantes, junto a garrafas de espumantes.
O advogado diz ainda que o cliente relatou falha dos extintores no momento do fogo, o que ele questiona se levaria a um resultado diferente. "Foi uma sucessão de erros por parte dos entes públicos, MP, prefeitura, Bombeiros e donos da boate, mas se trata claramente de homicídio culposo. O dolo eventual não se aplica", afirma.
A defesa de Marcelo também diz que os extintores não funcionaram e questiona a tese acerca do início do fogo. Em uma arte que as advogadas que o representam montaram, elas indicam a posição de cada membro da banda no palco e alegam que ele estava no lado contrário ao foco de incêndio.
Um vídeo que pretendem mostrar ao júri, gravado depois das tentativas de apagar o fogo, mostra chamas no teto, uma pessoa gritando "fogo na Babilônia" e alguém dizendo que devem ir embora.
"Vamos alegar duas teses: a absolvição ou desclassificação para homicídio culposo", diz Tatiana Borsa, que assumiu o caso em agosto de 2019.
"Ele não sabia, foi ingênuo, acreditou que a boate fosse segura. A gente só quer Justiça, sabemos a dor dos pais, e a justiça é a absolvição dele", afirma ela.
OS QUATRO RÉUS
ELISSANDRO CALLEGARO SPOHR, sócio-proprietário da Kiss, era conhecido na cidade como Kiko da Kiss e era quem cuidava mais diretamente da administração da boate, onde entrou no final de 2010.
MAURO LONDERO HOFFMANN
o outro sócio-proprietário da boate, segundo a defesa dele, era mais um investidor, que não se envolvia diretamente nas decisões relativas ao local, mas que encontrou a documentação em ordem quando entrou na sociedade.
MARCELO DE JESUS DOS SANTOS
então vocalista da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava no palco da boate e acendeu um sinalizador no início do show. O artefato é apontado como iniciador do incêndio, o que a defesa dele questiona pela posição do músico no palco.
LUCIANO BONILHA LEÃO
produtor e auxiliar de palco do grupo musical. Luciano comprou o artefato usado por Marcelo e foi responsável por entregá-lo ao vocalista. A defesa dele também questiona a tese sobre o que iniciou o fogo.
Acusações Os quatro serão julgados por homicídio simples, quando não há qualificadora, pelas 242 mortes ocorridas em decorrência do incêndio na boate, e por tentativa de homicídio, essa relacionada aos 636 sobreviventes da tragédia.