Quase 800 entidades criticam 'esquartejamento' da política ambiental no Congresso
"Votar a favor desses equívocos significa apoiar a diminuição da capacidade de o Brasil combater o desmatamento, de assegurar o equilíbrio no uso múltiplo das águas e de garantir a efetividade dos direitos constitucionais dos povos indígenas e a tutela dos direitos humanos", diz a carta
© Waldemir Barreto/Agência Senado - imagem ilustrativa
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(FOLHAPRESS) - Um manifesto assinado por 790 entidades -entre ONGs, universidades, movimentos sociais e associações- pede a líderes políticos em Brasília que corrijam equívocos na MP 1.154, cuja versão aprovada pela comissão mista do Congresso na quarta-feira (24) esvaziou o MMA (Ministério do Meio Ambiente) e o MPI (Ministérios dos Povos Indígenas).
"Votar a favor desses equívocos significa apoiar a diminuição da capacidade de o Brasil combater o desmatamento, de assegurar o equilíbrio no uso múltiplo das águas e de garantir a efetividade dos direitos constitucionais dos povos indígenas e a tutela dos direitos humanos", diz a carta.
"Não há qualquer razão administrativa que justifique o esquartejamento do MMA e a redução de poder do MPI", pontua o texto.
Os pontos criticados são a retirada de competências do MMA sobre o CAR (Cadastro Ambiental Rural), a ANA (Agência Nacional de Águas) e a gestão de resíduos sólidos e saneamento, além de perda de duas atribuições fundamentais do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas: a demarcação de terras indígenas e a administração da Funai.
Na quarta, após a aprovação em comissão da MP que reestrutura a Esplanada, organizações ambientais já haviam afirmado que a "boiada" está passando novamente, em referência à expressão usada pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles para defender o desmanche de políticas da área.
A aprovação do texto da MP 1.154 contou com o apoio do governo, o que abriu oportunidade para outras duas pautas antiambientais. Também na quarta-feira (24), a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para a tramitação do PL 490, que estabelece um marco temporal para o reconhecimento de terras indígenas.
Os deputados também voltaram a incluir emendas antiambientais na MP 1.150, que foi aprovada pelo plenário da Câmara com uma flexibilização da Lei da Mata Atlântica -trecho que havia sido retirado da matéria no Senado. A MP vai para a sanção presidencial.
No Twitter, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, afirmou que o presidente Lula deve vetar o trecho que flexibiliza a lei.
A negativa do Ibama para a perfuração de um poço de petróleo da Petrobras na foz do Amazonas, em 17 de maio, foi o estopim da crise que opõem setores do governo Lula. A reportagem apurou junto a interlocutores do Ministério do Meio Ambiente, do PT e da presidência da Petrobras que o presidente Lula se sentiu traído com a publicação da decisão do Ibama.
Ele esperava que Marina o informasse previamente sobre a decisão, para que ele costurasse uma saída política junto ao MME (Ministério de Minas e Energia).
O tuíte de Gleisi abrandando a crise nesta quinta-feiro, no entanto, só veio após uma avalanche de críticas ao PT. Na noite da quarta-feira, a página da bancada petista no Senado comemorou a aprovação da MP 1.154 pela comissão mista. "Vitória!", afirmou o partido no Twitter, gerando indignação de apoiadores, especialmente da ala ambientalista.
"Podiam fingir revolta, hein", comentou o perfil do Observatório do Clima, rede de mais de 90 organizações socioambientais, em resposta ao tuíte petista. Na tarde desta quinta (25), Gleisi recorreu também ao Twitter para redirecionar o partido.
"Sobre o atraso ocorrido ontem no Congresso, vamos trabalhar para que seja revertido. Se for preciso, vamos ao STF para reaver a estrutura do meio ambiente e povos indígenas", ela afirmou, contrariando o que aliados políticos de Lula consideravam mais cedo. No mesmo tuíte, a presidente do PT afirma que o partido fará pressão contrária ao PL 490.
O conjunto de aprovações antiambientais no mesmo dia chocou ambientalistas no país e também internacionalmente.
"Se o meio ambiente e a proteção aos direitos indígenas estão ameaçados, eu fico imaginando quão confiável é o compromisso de Lula", afirmou à reportagem a eurodeputada alemã Anna Cavazzini, vice-presidente da delegação para relações com o Brasil no Parlamento Europeu.
"Se essas agendas perderem o rumo no Brasil, o já criticado acordo comercial [entre a União Europeia e o Mercosul] perderá ainda mais o apoio do público [europeu]", diz Cavazzini.
Influente na imprensa francesa, o cientista político francês François Gemenne também expressou críticas, usando o Twitter.
"Apesar de seu apoio à Rússia, muitos na Europa continuam a ver Lula como um ícone. Ele agora está prestes a dar lugar aos lobbies do desmatamento e despir os ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, para que o desmatamento possa retomar a todo vapor", afirmou Gemenne, que é especialista em mudanças climáticas e autor do painel do clima da ONU.
O CAR (Cadastro Ambiental Rural) sofreu cortes nas duas medidas provisórias que avançaram nesta quarta.
Além da proposta contida na MP 1.154, que transfere o CAR para o Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos, a MP 1.150 também enfraquece o vínculo do CAR com o sistema financeiro, que hoje já usa informações dos cadastros dos proprietários rurais para evitar financiar atividades ligadas a desmatamento.
Segundo pesquisadores do CPI (Climate Policy Initiative), o "texto ameaça o alinhamento do sistema financeiro com a sustentabilidade ao buscar restringir a capacidade de as instituições financeiras negarem empréstimos com base no descumprimento do Código Florestal e da Lei de Crimes Ambientais".
"O CAR não pode ficar sujeito a mudanças ministeriais, sob o risco de um apagão ambiental dos imóveis rurais. O Congresso Nacional precisa reconhecer a sua responsabilidade sobre o futuro da sustentabilidade do agronegócio brasileiro", afirmou o CPI em nota.
Outra manifestação, assinada pelas entidades que compõem o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), afirma que o conjunto de medidas antiambientais aprovadas pelo Congresso atendem "aos interesses de diversos setores econômicos e políticos que estão presos a um passado associado à degradação e negação da gravidade das crises ambientais".
Ao pedir a reversão das propostas, a carta sugere que o presidente Lula use suas "competências constitucionais" para evitar medidas "típicas de governos atrasados e negacionistas, já derrotadas nas urnas pelos brasileiros".
Os parlamentares reunidos na frente parlamentar dos povos indígenas também se pronunciaram por carta, reunindo centenas de assinaturas de entidades e pessoas físicas.
"Defendemos a necessidade de manutenção do texto original da medida provisória 1.154/23. Medida contrária irá inviabilizar a retomada das políticas públicas brasileiras, imprescindíveis para a garantia dos direitos da sociedade sobre o meio ambiente e dos direitos de povos indígenas e demais povos e comunidades tradicionais, bem como essenciais para o desenvolvimento econômico e a imagem do Brasil no exterior", diz a carta.