Incêndios em favelas atingem terrenos de maior valor em São Paulo
Levantamento exclusivo da Pública em parceria com o Guardian Cities revela que comunidades atingidas estão localizadas em áreas cerca de 75% mais valorizadas que a média
© Iuri Barcelos / Agência Pública
Brasil Denúncia
Era uma e meia da manhã do último sábado, 25 de novembro, quando 13 viaturas do 1o Grupamento do Corpo de Bombeiros de São Paulo, com a sirene ligada, cruzaram a avenida Roberto Marinho, na zona sul de São Paulo, despertando os moradores das 17 pequenas favelas do caminho.
Ao chegar à comunidade Levanta Saia, eles tiveram poucos minutos para descobrir o melhor caminho pelas vielas que se formam entre os mais de cem barracos de madeira. O fogo já consumia oito barracos. “Como a gente não conhece o lugar, é como se fosse um labirinto”, explicou Fernanda Freitas, capitã do Corpo de Bombeiros.
Moradores se revezavam para ajudar uns aos outros. “Me ajuda aqui, me ajuda a descer isso aqui!”, gritava um homem que tentava salvar seus eletrodomésticos. As famílias se espalharam pelo asfalto em torno dos pertences que conseguiam recuperar. Eram consoladas pelos moradores das favelas vizinhas. Muitos já viveram o mesmo terror. As favelas da região do Campo Belo, uma das áreas mais ricas da cidade, frequentemente são atingidas por incêndios – mas, em geral, não se sabe as causas.
No meio da multidão, Felipe Ramon, 23, estava em estado de choque. Chegava da casa de sua mãe, na favela do outro lado da avenida. Monitor num bufê infantil, ele andava sobre os escombros no beco estreito que antes era sua casa. Em busca de algo a ser recuperado, sumiu na escuridão que consumia a favela. Tudo o que se via eram as luzes dos celulares que os moradores usavam para se localizar. Alguns minutos depois, ele ressurgiu. A família o abraçou, mas ele manteve a atenção num pequeno copo que tinha nas mãos. Dentro, suas escovas e pasta de dente – os únicos pertences que lhe restaram.
Antes de morar na Levanta Saia, Felipe vivia com a mãe na comunidade vizinha, a favela do Piolho. É a sétima vez que perdem a moradia num incêndio. “Aí eles dão um colchão e fazem nosso cadastro. Mas já deve ter uns 50 cadastros no meu nome lá [na Prefeitura]”, desabafa.
Às duas e dez da madrugada, o fogo estava quase apagado. Vinte barracos foram destruídos. Cem pessoas ficaram desabrigadas.
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Incêndios são mais frequentes em áreas valorizadas
Em São Paulo, onde mais de 1 milhão e meio de pessoas vivem em 1.700 favelas, esse tipo de desastre é tão comum que alguns moradores passam por ele mais de uma vez. Entre 2001 e 2012, os bombeiros registraram nada menos de 1.648 incêndios em favelas. Em 2016, foram 202 casos, e este ano, 81.
Um levantamento inédito feito pela Pública em parceria com o Guardian Cities revela que as comunidades atingidas costumam estar localizadas nas áreas mais ricas.
A pesquisa partiu de um relatório da Defesa Civil com informações de 80 incêndios de 2008 a 2012. O valor venal médio das áreas que compõem esse grupo de favelas atingidas foi de R$ 291 em 2013, segundo estimativas do Sindicato da Habitação (Secovi), que representa as empresas imobiliárias da cidade. Já o mesmo cálculo feito para uma amostra aleatória de 460 favelas registrou valor de R$ 167 no mesmo ano.
Ou seja: em média, as favelas atingidas por fogo estão em áreas que têm valor venal cerca de 75% mais alto que as demais.
A frequência dos incêndios é também maior nas áreas nobres. Foram 23 ocorrências nos 15 distritos com maior valor de lançamentos imobiliários nos últimos cinco anos. Esses distritos aglomeram 145 favelas – o que significa que houve uma taxa de um incêndio para cada seis comunidades nessas regiões. Nos outros distritos, que comportam as restantes 1.559 favelas da cidade, foram registrados 52 incêndios. Taxa bem menor: uma ocorrência para cada 29 favelas.
As autoridades negam uma possível associação dos incêndios com a valorização imobiliária dos terrenos atingidos. Uma CPI criada em 2002 na Câmara dos Vereadores para investigar a suspeita de incêndios criminosos determinou como causa “uma somatória de fatores”, incluindo o clima, baixa umidade, sobrecarga de energia em instalações elétricas precárias, uso de botijões de gás e construções de madeira.
“Eles só falam disso quando tem incêndio. Passam uns dias e todo mundo esquece”, reclama Rudinéia Arantes, líder comunitária da favela do Piolho, no distrito de Campo Belo. Ela admite que as estruturas de construção são perigosas. As instalações elétricas que os moradores puxam clandestinamente para seus barracos frequentemente estouram, gerando princípios de incêndio. E a verticalização dos barracos de madeira faz com que as chamas se espalhem facilmente pela comunidade. “Era pra resolver as questões dos postes, das fiações… e nada foi feito”, denuncia.
Famílias convivem com repetidos incêndios
Na noite de 7 de setembro de 2014, a favela do Piolho, também no Campo Belo, foi tomada por chamas que destruíram 80% dos barracos e desabrigaram 264 famílias. Seus moradores eram vítimas do segundo grande incêndio em apenas dois anos.
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Hoje, é difícil imaginar que a Piolho foi quase que totalmente consumida pelo fogo em 2014. A quadra que estabelece os limites da comunidade está completamente tomada por barracos novamente – seja pelo retorno de antigos moradores ou de novos habitantes que almejam uma vida perto do centro.
Assim como a Levanta Saia, a favela do Piolho acompanha a margem da Roberto Marinho, avenida que leva à Marginal do Rio Pinheiros, uma das principais vias da cidade. Pequenas favelas se encaixam nos terrenos ainda não tomados pela forte demanda imobiliária sobre o bairro. Em uma cidade bastante desigual, esse é um bairro privilegiado: são vários os equipamentos de saúde, educação e transporte na região.
“A gente mora num bairro em que a especulação é fora do normal. Mas aqui você tem vínculo. Aqui tem os equipamentos públicos. Tem escolas, ONGs, comércio, creches e tudo mais”, argumenta Rudinéia. “Por que você sairia daqui? O que a gente queria era ter uma habitação regular aqui mesmo”.
Carla Aparecida tem cinco filhos aos 34 anos e é uma das que retornaram à Piolho após o incêndio de 2014. “Até as necessidades a gente tem que fazer no baldinho porque ainda não tem banheiro”, diz, apontando para as paredes do barraco que ela mesmo levantou.
Todos os móveis se concentram num ambiente de aproximadamente 4 metros quadrados. Nele se misturam fogão, duas camas, as roupas e pequenos objetos. Num cômodo separado por uma folha de madeirite, há também um pequeno tanque e um chuveiro.
O incêndio de 2014 foi o terceiro a atingir a família de Carla. Ainda em 2012, eles tiveram todos os pertences queimados numa tarde de setembro. “Demorei mais de um ano para reconstruir meu banheirinho e, quando eu estabilizei tudo e só faltava uma geladeira pra mim, veio o [outro] incêndio. Queimou tudo, tudo, tudo”, lamenta.
Carla conta que após os incêndios chegou a receber um auxílio emergencial da prefeitura, que é condicionado à saída dos moradores da região. Mudou-se para uma favela na zona leste, mas as filhas não aceitaram morar tão longe e se mudaram para a casa do pai, em Moema. Carla acabou retornando novamente à favela do Piolho, onde é mais fácil achar trabalho. Embora esteja desempregada, ela já trabalhou como doméstica e coletando materiais recicláveis.
De favela em favela
Adriana Alves escolheu a Piolho como destino quando foi vítima, em 2007, de um incêndio em outra favela da região, a do Jardim Edite. Já em 2014, quando seu barraco na Piolho foi destruído pelo fogo, continuou sua jornada entre as favelas da zona sul. Foi morar de aluguel em Paraisópolis com a promessa de ajuda de R$ 400 da prefeitura até que recebesse uma moradia definitiva. Mas recebeu somente os três primeiros meses de auxílio. Não fosse a luta travada na Justiça, encerrada em setembro deste ano, não voltaria a receber a verba prometida. E o conjunto habitacional que abrigaria em definitivo esses removidos, previsto para 2013, ainda não foi entregue.
Nas folhas do processo que Adriana moveu contra a prefeitura, um documento interno da Secretaria de Habitação mostra que o órgão avaliava que ela teria direito ao auxílio. No entanto, a prefeitura cortou o benefício alegando irregularidades no cadastro, em razão de sua mãe já ter sido contemplada com uma moradia quando era mais jovem. A Justiça decidiu em favor de Adriana, que voltou a receber o benefício.
Procurada pela Pública, a prefeitura alega “que após as análises documentais, 247 famílias comprovaram vínculo com a área e atualmente recebem auxílio aluguel. Todas essas famílias serão contempladas com moradias definitivas ao longo dos próximos anos. O restante das famílias teve seus atendimentos suspensos devido à falta de documento com comprovação de vínculo com a área”.
Ministério Público investiga responsabilidade da prefeitura
A situação da favela do Piolho está sendo investigada pela Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público (MP) de São Paulo, que investiga se houve irregularidades ou displicência da prefeitura em tomar as providências necessárias para sanar os problemas do local.
Grande parte da comunidade está localizada em áreas particulares que estão em processo de desapropriação. Entretanto, segundo relatório da prefeitura anexado ao processo, ainda não foram destinados recursos para que isso se concretize.
De acordo com o MP, a região está dentro do perímetro da Operação Urbana Água Espraiada, que prevê investimentos em infraestrutura. No final de 2013, um ano antes do último incêndio, um relatório do Corpo de Bombeiros já alertava para os riscos de um novo desastre, dada a infraestrutura precária. “O local apresenta uma elevada carga de incêndio em virtude da quantidade de madeira que, associada às diversas instalações elétricas clandestinas e ao layout, faz com que os moradores estejam sujeitos a um real risco de morte em caso de incêndio”.
O projeto piloto de prevenção e combate à incêndios, o Previn, chegou a ser instalado na região, após o incêndio de 2012. Mas o Corpo de Bombeiros, em nova vistoria em razão do último incêndio em 2014, relata uma situação diferente. “No local não havia sistemas de prevenção contra incêndios, tais como extintores e hidrantes.”
Em resposta a outro ofício da Promotoria, já em 2016, a Coordenadoria Técnica da Secretaria de Habitação indicou que “para esta área, ainda não há projeto de urbanização e nem cronograma de projetos e obras”.
Remoções
A Operação Urbana Água Espraiada pretende reestruturar a região entre as avenidas Chucri Zaidan, Roberto Marinho e Marginal Pinheiros – onde estão as favelas do Piolho e Levanta Saia.
Segundo a prefeitura, essa operação promete criar ou reestruturar sistemas viários, de transporte coletivo, de habitação social e espaços públicos de esporte e lazer. É sob esse argumento que a operação já removeu mais de 11 mil famílias, com a possibilidade de o mesmo ocorrer com outras 8 mil, segundo dados do Observatório das Remoções.
“Antes adotava-se como política a remoção e realocação para melhorias habitacionais e de infraestrutura dessas comunidades. Era um ‘item’ da reurbanização para adequar essas comunidades para que se pudesse morar”, conta Margareth Matiko, coordenadora de Urbanismo do Instituto Pólis. “O que tem acontecido é que os governos começaram a adotar a política de retirada da população para os grandes projetos urbanos, que é o caso, por exemplo, das Operações Urbanas”, avalia a urbanista.
Ela argumenta que a remoção dos moradores para outras regiões só seria necessária em caso de riscos à população residente, como a possibilidade de enchentes e deslizamentos. “Há um processo que é decorrente desse, que é a própria valorização do lugar. E então você tem a expulsão espontânea. A área começa a ser tão valorizada que a pessoa não consegue viver lá pelo próprio custo de vida”, explica a urbanista.
Margareth avalia que frequentemente remoções não são feitas de maneira adequada. “[No caso das ocupações formais] você tem um título da propriedade, você recebe o valor e pode até questionar. No caso das ocupações irregulares ou das populações, elas são retiradas daquele lugar e nem sempre têm um atendimento habitacional próximo e adequado.”
Em resposta à reportagem, a Secretaria Municipal de Habitação diz que tem como meta entregar 25 mil novas moradias até 2020. “Apenas nos últimos quatro anos, foram entregues 14 mil unidades. Em 2017, a secretaria viabilizou áreas e aporte de recursos para construção de 22 mil moradias, atualmente em obras ou em fase de contratação”, diz a nota enviada à Pública.
Confira a nota da Prefeitura na íntegra aqui
A comunidade Sônia Ribeiro está localizada em uma área particular. Em 2014, após o incêndio ocorrido no local, a Secretaria Municipal de Habitação iniciou o cadastramento dos moradores para atendimento habitacional levando-se em consideração que as condições no local para a devidas identificações dos moradores eram precárias, uma vez que os domicílios foram destruídos pelo fogo. Se apresentaram 579 famílias, onde ficou acordado em Audiência Pública que os moradores deveriam comprovar residência na área para posteriormente realizar o cadastro habitacional, sendo válidas declaração de postos de saúde, escolas, hospitais, contas de Gás, Luz, TV a cabo, lojas e demais comprovantes desde que nominal ao titular cadastrado. Após o recolhimento da documentação solicitada, observou-se a apresentação de comprovantes que não correspondiam ou comprovavam vínculos com a área. Em alguns casos, mais de uma família apresentou o mesmo comprovante. Após as análises documentais, 247 famílias comprovaram vínculo com a área e atualmente recebem auxílio aluguel. Todas essas famílias serão contempladas com moradias definitivas ao longo dos próximos anos. O restante das famílias teve seus atendimentos suspensos devido à falta de documento com comprovação de vínculo com a área.
A Secretaria Municipal de Habitação tem como meta entregar 25 mil moradias até 2020 para enfrentar um déficit habitacional que demanda a construção de novas 360 mil moradias. Apenas nos últimos quatro anos foram entregues 14 mil unidades. Em 2017, a secretaria viabilizou áreas e aporte de recursos para construção de 22 mil moradias, atualmente em obras ou em fase de contratação.
Com relação aos incêndios em assentamentos precários, após ação do Corpo de Bombeiros, órgão responsável e capacitado pelo combate á incêndio, o município atua com o atendimento emergencial, por meio da Defesa Civil, Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social e prefeituras regionais que contempla, além de ação intersecretarial, o encaminhamento das famílias a centros de acolhida e disponibilização de material básico.
Investigações são inconclusivas
As suspeitas de que os incêndios teriam origem criminosa levaram à criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara de Vereadores em 2012. Também envolveram investigações do Ministério Público, da Polícia Civil e de órgãos municipais. No entanto, cinco anos depois, grande parte dos inquéritos foi arquivada ou continua inconclusiva.
O relatório final da CPI é ambíguo: “Mesmo que de forma não totalmente conclusiva, pois reconhecemos que carece de mais elementos para um entendimento cabal da questão, […] as ocorrências aconteceram em razão de uma somatória de fatores, como, por exemplo, o clima, a baixa umidade, a falta de chuva, a sobrecarga de energia em instalações elétricas precárias, uso de botijões de gás e principalmente a madeira, largamente utilizada nas construções, materiais de fácil combustão”. Assinaram o documento seis integrantes: Ricardo Teixeira (PV), Edir Sales (PSD), Floriano Pesaro (PSDB), Eliseu Gabriel (PSB), Ushitaro Kamia (PSD) e Aurélio Miguel (PR). Apenas a vereadora Juliana Cardoso, do PT, indicou voto contrário.
Durante seus trabalhos, a CPI recebeu muitas críticas de movimentos sociais e de moradores das favelas. Os vereadores chegaram, por exemplo, a exigir do Corpo de Bombeiros uma relação de todas as ocorrências de incêndio em favelas nos cinco anos anteriores. Mas o inquérito terminou sem que os Bombeiros apresentassem os detalhes de cada ocorrência.
Além disso, diversas reuniões da CPI foram canceladas por falta de quórum mínimo para sua realização. Dos 13 encontros previstos, apenas seis ocorreram. Na abertura da CPI, todos os seis integrantes compunham a base aliada do governo Kassab, então prefeito da cidade.
O fato de todos os membros da CPI terem campanhas eleitorais financiadas por empresas do setor imobiliário, como revelou um levantamento feito pelo portal UOL, também gerou polêmica.
Em 2012, o Grupo Atuação Especial de Combate ao Crime do Ministério Público organizado abriu um inquérito para investigar se houve ação criminosa nessas ocorrências que deixaram milhares de pessoas desabrigadas. A investigação foi arquivada pela Justiça. Com informações da Agência Pública.