'Carta a Marielle': delegado pede desculpa pela precariedade da polícia
Emocionado, Brenno Carnevale descreve dificuldades para prosseguir com investigações dos homicídios que ocorrem no estado do Rio
© Reuters / Ricardo Moraes
Brasil Rio
O delegado Brenno Carnevale, lotado no setor de inteligência da Polícia Civil, fez uma carta de desabafo sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista, Anderson Gomes. O profissional lamenta a precariedade das condições de trabalho na Divisão de Homicídios, onde o caso ocorrido em 14 de março é investigado.
Emocionado, Carnevale descreveu as dificuldades para prosseguir com as investigações dos homicídios que ocorrem no Rio. Além da falta de materiais, ele faz críticas à intervenção federal na segurança do estado. Segundo ele, os policiais da DH têm uma quantidade enorme de casos para investigar, falta de recursos humanos e de materiais.
De acordo com a carta, a apuração da morte de Marielle e Anderson implica na "paralisação de uma infinidade de investigações de outras mortes, pretas e brancas, ricas e pobres, todas covardes"."Escolha de Sofia", afirma.
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Carnevale tem 28 anos e entrou para a Polícia Civil do Rio há pouco mais de quatro anos. Na época, ganhou o título do mais novo delegado do país. Ele trabalhou dois anos na DH da Baixada Fluminense até ser transferido para a DH Capital, onde atuou em centenas de investigações, como da estudante Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos, baleada dentro da escola.
Confira a íntegra do desabafo do delegado publicado pelo O Globo:
"Carta a Marielle Franco
Marielle, durante quatro anos ininterruptos de minha vida estive diretamente envolvido em investigações de mortes violentas no Estado do Rio de Janeiro. Acumulo em meu coração ardentes cicatrizes que me fazem lembrar mães, pais, filhos, irmãos, maridos, esposas. Todos vitimados pela maldade humana. Foram muitas madrugadas sem repouso. Muitas lágrimas na penumbra da folga. Assisti a muitos sorrisos desmancharem-se diante da morte. Ouvi gargantas secarem de tantos gritos de dor ao verem de perto a fragilidade do ser e deixar de ser humano.
Carregava em meus ombros a pesada esperança do sucesso das investigações, afinal, meu trabalho representava o horizonte pós-tempestade para as famílias aviltadas pela violência. Era pouco, mas era tudo. Não fui herói. Alguns casos foram solucionados, mas a maioria das investigações ainda segue o errante caminho entre Delegacia de Homicídios e Ministério Público, à espera de uma empoeirada prateleira de arquivo onde possa descansar em paz. Ali se abafam os gritos por justiça ecoados pelos parentes e amigos daqueles que passaram a ser apenas mais um nome impresso em uma guia de remoção de cadáver.
Não precisamos de heróis. Mas escrevo-lhe a verdade, Marielle. Poucos se preocupam com as mortes diárias. São muitas as agruras das investigações policiais em homicídios no Rio de Janeiro. As viaturas, por exemplo, estão sucateadas e sem manutenção. A quantidade de investigadores é pífia diante do volume de vidas humanas ceifadas. As escutas telefônicas, quase uma caixa-preta, muitas vezes inacessíveis a alguns delegados. Algumas armas somem, outras não funcionam. Nunca presenciei deputados ou outros poderosos lutando por equipamentos que permitam encontrar evidências durante a perícia no Instituto Médico-Legal. Aliás, esse mesmo instituto não tem impressora para permitir que uma testemunha seja ouvida imediatamente quando vai liberar o corpo de seu ente querido. Sim, muitos veículos apreendidos ficam abandonados e sem qualquer vigilância. Ouse chamar atenção para este fato e a resposta será sempre a mesma: 'É assim mesmo'.
E, mesmo assim alguns colegas ainda insistem em se apresentarem em impecáveis ternos e gravatas para bradar nos microfones que está tudo em ordem. Heróis? Diante do caos programado, sinto muito em confessar-lhe que a solução de seu caso pressupõe a paralisação de uma infinidade de investigações de outras mortes, pretas e brancas, ricas e pobres, todas covardes. Escolha de Sofia.
Infelizmente não tive a oportunidade de contribuir para a elucidação de sua covarde morte, e me desculpo por isso. Me aprofundei sobre a árdua e interrompida missão que você com êxito cumpriu por aqui e não pude deixar de escrever-lhe para pedir socorro. Socorro pelas investigações das mortes violentas. Socorro por amor ao ser humano que sei que você, Marielle, ainda nutre onde quer que esteja, mesmo em tempos difíceis de intervenção funeral.
Com respeito e afeto, Brenno Carnevale Nessimian"