Documentário mostra bastidores do New York Times no governo de Trump
Não é um filme fácil, mas é sem dúvida sintomático da era das "fake news"
© Kevin Lamarque / Reuters
Cultura Fake News
O arranha-céu do New York Times, no coração da ilha de Manhattan, é todo de vidro, um manifesto arquitetônico por luz e transparência. Mas nunca os jornalistas desse que é o diário mais famoso do mundo foram seguidos tão de perto por câmeras.
"Esses caras todos estavam trabalhando debaixo de um microscópio", diz Liz Garbus, diretora de um documentário que disseca os bastidores do noticiário político do mais influente jornal americano ao longo do primeiro ano do governo de Donald Trump. "Estavam sob uma pressão maior do que qualquer um de nós."
Sem previsão de chegada ao mercado internacional, "The Fourth Estate", o filme batizado em referência ao poder que seria ocupado pela imprensa numa democracia, estreou há um mês no último Festival de Tribeca, em Nova York, e acaba de ter o primeiro de quatro episódios exibido pelo Showtime, na TV americana.
Não é um filme fácil, mas é sem dúvida sintomático da era das "fake news". Isso porque Garbus, abusando de uma dramática trilha incidental no volume máximo, tenta transformar em espetáculo todo o trabalho desgastante pela busca dos fatos numa atmosfera turbulenta, atravessada por tempestades de tuítes coléricos.
"No começo, leitores se incomodavam com todo o peso dado aos tuítes de Trump, mas eu justificava dizendo que ele é o presidente", diz Elisabeth Bumiller, diretora da sucursal de Washington do New York Times e personagem onipresente do filme. "Temos editores que chegam às seis da manhã para ficar de olho neles."
Maggie Haberman, uma repórter da Casa Branca que ficou famosa por ter sido carrapato do presidente durante a sua campanha e reputada por ter acesso irrestrito ao mais polêmico governante americano, conta que os espasmos verborrágicos de Trump nas redes sociais são uma janela com vista privilegiada de "seu pensamento em tempo real".
"Isso é o que passa pela cabeça do líder mais importante do mundo", diz a jornalista. "Ele não tem relações com as pessoas. Tudo é uma transação, e o seu entendimento da mídia vem da leitura que fazia dos tabloides de Nova York."
Nesse sentido, o documentário de Liz Garbus é o avesso dos tuítes presidenciais.
Entre Manhattan e Washington, muitas das cenas de seu filme são closes de telas e teclados de computador em que as letras se esforçam para compor manchetes à altura da retórica -belicosa, hiperbólica e imprevisível- desse republicano.
"Ele mudou a nossa maneira de cobrir muitas coisas", conta Bumiller. "E, pela primeira vez, passamos a publicar termos obscenos, porque é a linguagem usada pelo presidente."
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Mas Garbus, indicada há dois anos ao Oscar de melhor documentário pelo eletrizante "What Happened, Miss Simone?", sobre a vida da cantora de jazz Nina Simone, quis fazer mais do que retratar a vida de reuniões, cafés e horas perdidas diante de discursos presidenciais desses jornalistas.
Na ressaca da eleição de Donald Trump, jornais como o New York Times registraram um aumento bem expressivo no número de assinantes, que recorreram à velha dama cinzenta, como o diário é conhecido, buscando talvez ali um tratamento mais equilibrado de uma realidade imprevisível.
Outros, na visão de Garbus, também esperavam que o jornal se tornasse uma espécie de canal da oposição ou o pilar de uma resistência anti-Trump.
"Imaginei que fosse mesmo encontrar um lugar transbordando de viés liberal", conta a cineasta. "Mas vi que todos esses jornalistas estavam só buscando a verdade, mesmo que a esquerda reaja com ódio quando não vê suas ideias refletidas nas páginas do jornal."
Os jornalistas que desfilam diante das lentes de Garbus, aliás, dizem que só concordaram em virar o alvo da notícia pela primeira vez na tentativa de esclarecer bem esse ponto.
"Era exaustivo ser seguida por câmeras o tempo todo, e achei difícil ver tudo depois", diz Bumiller. "Mas não somos a oposição nem a resistência."
"Todos pensamos que o jornalista não deve ser o assunto, mas temos um presidente que tenta nos transformar em partido de oposição", diz Haberman. "E muita gente não entende o nosso trabalho, então era bom mostrar que o que fazemos aqui não é uma coisa sinistra criada num laboratório como Trump faz parecer."Com informações da Folhapress.