Diversidade de atrações e de espaços marca a Flip 2018
A Flip reuniu momentos de debates políticos e em defesa de causas sociais e culturais
© Walter Craveiro / Divulgação
Cultura Festa
A intensa programação oferecida na 16ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), realizada de 25 a 29 de julho, no litoral sul do Rio de Janeiro, foi um desafio neste ano para os visitantes. Com a triplicação do número de casas parceiras e eventos paralelos, houve atrações para todos os gostos e o público também pode assistir gratuitamente a encontros de autores de diversas nacionalidades no palco principal.
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A final do encontro, a Agência Brasil destacou alguns detalhes da festa, que desta vez homenageou a autora paulista Hilda Hilst (1930-2004), considerada uma das maiores escritoras da língua portuguesa. A Flip reuniu momentos de debates políticos e em defesa de causas sociais e culturais.
A seguir, alguns dos principais momentos da festa literária:
Um dos destaques da programação e maior parceira da Flip, reunindo 50 atrações, o Serviço social do Comércio (Sesc) promoveu, no sábado (28), a mesa Yanomami para Sempre, no Sesc Caboré. O debate reuniu o líder yanomami Davi Kopenawa e a fotógrafa suíça Claudia Andujar, que fotografou a etnia durante os anos 1970 e 1980 e produziu um trabalho extenso que está exposto em uma galeria em Inhotim, Minas Gerais. Durante a Flip, o Sesc apresentou parte das fotos em Paraty, na exposição Yano–a.
"Foi o trabalho mais importante da minha vida e até hoje é uma experiência que me toca muito", disse a fotógrafa. "Desenvolvi um trabalho intimista sobre seu cotidiano. Agora, depois de quase quatro décadas de empenho quase que exclusivo na defesa de seus direitos, sinto a necessidade de mostrá-lo para o Brasil e o mundo."
Antes das 9h do dia 26, uma fila enorme se formou em frente à Casa Folha, para assistir à discussão sobre educação. Na mesa, o ex-ministro e professor da Universidade de São Paulo (USP) Renato Janine Ribeiro relatou os desafios que encontrou quando esteve à frente da pasta no período de crise do governo Dilma Rousseff.
O professor defendeu uma educação que estimule o espírito crítico e a criatividade e questionou o projeto Escola Sem Partido, que considerou fruto de medos fantasiosos. "Educar é abrir para o mundo. A escola tem que dar valores diferentes dos que a pessoa aprendeu na religião, família e classe social."
Novidade deste ano, o Cinema da Praça, inaugurado pela prefeitura de Paraty, também teve muita procura do público. Na programação, foram apresentados filmes do Anima Mundi e do Festival Varilux de Cinema Francês, produções locais e ainda a pré-estreia de Unicórnio, do diretor Eduardo Nunes. Com Bárbara Luz, Patrícia Pillar e Zé Carlos Machado, o filme chegará aos cinemas em agosto.
No dia 25, a mesa com a participação da feminista e acadêmica Djamila Ribeiro e da escritora argentina Selva Almada foi ovacionada pelo público. Também recebeu muitos aplausos a poeta pernambucana Bell Puã, que abriu o debate com versos críticos ao racismo e ao machismo, que fizeram parte do público levantar para aclamá-la.
"Não defendo vidraça de banco, defendo gente", disse Bell, incendiando a plateia com críticas ao encarceramento e ao assassinato da população negra. "Freud explica, mas Criolo e Emicida que escancaram a realidade."
Uma exposição com fotos da poetisa e escritora Hilda Hilst foi um dos destaques da tenda da EDP, patrocinadora da Flip, que produziu festas temáticas sobre os países de língua portuguesa. As imagens fazem parte de um livro que foi lançado neste ano pelo fotógrafo português Fernando Lemos, mas quem esteve em Paraty pôde ver ampliados os retratos da escritora aos 29 anos.
O público da Casa de Não-Ficção Época-Vogue pôde assistir também à entrevista de cerca de uma hora com o juiz federal Marcelo Bretas, que conduz os processos da Lava-Jato no Rio de Janeiro. Ele respondeu a uma série de perguntas polêmicas feitas pelos jornalistas Bernardo Mello Franco e Plínio Fraga, e afirmou considerar que políticos condenados por corrupção não devem ter uma segunda chance na política.
O magistrado também foi questionado sobre o auxílio-moradia que ele e a mulher, a juíza federal Simone Bretas, recebem, apesar de morarem em casa própria. O juiz afirmou que não discute se o benefício é justo, mas destacou que ele é legal, ainda que exista uma recomendação contrária do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). "Se quer mudar, mude-se a lei", disse.
A Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei) atracou uma réplica de barco pirata na orla de Paraty, onde foram realizadas mesas de debate para o público acompanhar em terra. O espaço surgiu de uma parceria entre 15 editoras e teve debates sobre conjuntura, direitos humanos, democratização da mídia e literatura - incluídas aí discussões dedicadas a Hilda Hilst, literatura de periferias e mercado editorial.
A atriz Tainá Müller declamou poemas de Hilda Hilst na Casa da Cultura de Paraty, que recebeu a programação da Globo durante a Flip. Ao fim da homenagem, interpretou a própria Hilda Hilst, em uma performance organizada pelo instituto que leva o nome da autora. A atriz interagiu com pessoas que fizeram parte da vida da escritora e convidou o público a declamar mais poemas.
No Ocupa Paraty, espaço reservado no Areal do Pontal, artesãos, artistas e comerciantes locais mostraram seus trabalhos em diversas tendas montadas no local. Em meio a compotas e peças de artesanato, o destaque foi a Biblioteca Comunitária Cora Coralina, que divulgava o trabalho comunitário no bairro do Condado, na periferia de Paraty.
"As pessoas passam aqui, ficam curiosas e querem comprar os livros. Mas estamos em uma feira e não estamos vendendo quase nada. O interessante é divulgar o trabalho e mostrar que estamos aqui na resistência", disse a professora Claudia Bianconi, criadora do projeto.
Na Flip dedicada à Hilda Hilst, uma autora que tratou da dimensão extracorpórea em sua literatura e até tentou contato com os mortos em sua chácara em Campinas, o eclipse lunar – a chamada Lua de Sangue – que ocorreu no dia 28, ajudou a reforçar o ar mágico e transcendental. O fenômeno ocorreu durante a mesa que reuniu os autores André Aciman e Leila Slimani.
A noite do dia 27, no Centro Histórico de Paraty, reuniu os sotaques carioca e paulistano em um bloco de carnaval puxado pela Casa Libre de Nuvens e Livros. Com banda e marchinha, o grupo de foliões percorreu as ruas de calçamento irregular e embalou a formação de alguns casais pelo caminho.
A autora russa Liudmila Petruchévskaia, de 80 anos, escreve sobre terror, mas divertiu o público. Ela participou de uma mesa que contou com a ajuda de seu filho, Fyodor, que fala português e fez a tradução para a autora russa - que não fala português nem inglês – e teve como mediadora, a portuguesa Anabela Mota Ribeiro. Não deu tão certo, mas Liudmila, além de ser uma figura interessante, mostrou simpatia e até cantou. No repertório, teve Besame Mucho.
Na mesa em homenagem à veredora Marielle Franco (PSOL-RJ), assassinada em março ao lado do motorista Anderson Pedro Gomes, a pesquisadora Janaína Damasceno leu um documento que surpreendeu muitos dos presentes. Em 1911, o diretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda, participou de um congresso em Londres em que apresentou oficialmente a política brasileira para o embranquecimento da população.
Na projeção, Lacerda previa que o país chegaria a 0% de negros em 2012, mas ainda levaria alguns séculos para eliminar os sinais "negróides" de sua população. "Isso é extremamente didático para a gente entender qual era o plano e qual ainda é o plano do Estado brasileiro para a população negra", disse a pesquisadora.
A vereadora Marielle Franco defendia causas sociais como o combate ao racismo, ao machismo e a todos os tipos de discriminação.
A escritora Conceição Evaristo participou de uma série de discussões na programação parceira da Flip 2018. A autora esteve na Casa Insubmissa de Mulheres Negras, na Casa Libre de Nuves e Livros, no Sesc e na Casa Paratodxs. Conceição é uma das cotadas para assumir a vaga de Nelson Pereira dos Santos na Academia Brasileira de Letras (ABL). Por onde passou, recebeu apoio à sua candidatura.
"O primeiro lugar de recepção da minha obra foi o movimento social negro. Quem me colocou nesse espaço e possibilitou a mídia estar interessada em mim foi o movimento social negro", destacou.
Distopias, realidades alternativas, folclore brasileiro e outros temas reuniram autores e leitores na Casa Fantástica, que marcou presença no Centro Histórico de Paraty. A casa ficou cheia e uma das mesas mais disputadas foi sob afrofuturismo, estética que está cada vez mais popular e combina ficção científica, protagonismo negro e referências africanas.
O escritor franco-congolês Alain Mabanckou não deixou de falar da Copa do Mundo conquistada pela França este ano, na Rússia. Em tom bem humorado, ele arrancou aplausos da plateia. "A África ganhou a Copa do Mundo, não é? A África e a França, porque a França também é África", disse. Apesar do tom de brincadeira, ele destacou o papel dos imigrantes africanos na sociedade francesa. "Os negros também fizeram a história da França, lutaram pela França contra os nazistas e foram trabalhar na França, depois da Segunda Guerra Mundial."
A sexta-feira (27) foi um dos dias mais marcantes do multiculturalismo da Flip 2018. Pela manhã, um autor suíço e uma autora italiana de origem somali falaram sobre a experiência de escrever em italiano. À tarde, além do franco-congolês Alain Mabanckou, que leciona em uma universidade americana, debateram em outra mesa uma francesa de origem marroquina e um egípcio radicado nos Estados Unidos, que conversaram sobre tudo. A mediação foi de uma jornalista portuguesa.
Uma fala do autor suíço Fabio Purstela definiu a importância da troca cultural para a poesia na Europa, onde a resistência à imigração ganha adeptos a cada dia. "A história da poesia italiana e europeia começa por um exílio. Dante Alighieri, do século 13, poeta e escritor, foi expulso de sua cidade e teve que vagar pedindo esmola. Se Dante vivesse hoje, seria encontrado no México, tentando atravessar o muro que Trump quer construir. A poesia começou dessa forma e é por isso que ela sempre será nômade."
Considerado um dos maiores especialistas do mundo em manuscritos da Idade Média, o pesquisador britânico Christopher de Hamel divertiu o público no palco principal da Flip, em vários momentos. Ao mostrar fotos suas, de luva, manuseando um dos objetos históricos, ele foi questionado pela mediadora, a historiadora e antropóloga brasileira Lilia Schwarcz, que já havia lido argumentos do autor contra as luvas. Hamel havia afirmado que a proteção pode causar mais danos aos manuscritos do que à pele humana e que a luva só foi colocada para fazer pose pra foto. A risada foi geral.
*O repórter viajou a convite da EDP, empresa patrocinadora da Flip 2018. Com informações da Agência Brasil.