Cantoras trans aprendem a domar a beleza peculiar da voz
Cantoras transexuais aprendem a domar a beleza peculiar da voz em transição
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Cultura Talento
"Quem me vê assim cantando / não sabe nada de mim / dentro de mim mora um anjo / que tem a boca pintada / que tem as asas pintadas / que tem as unhas pintadas / que passa horas a fio no espelho do toucador."
Quando o poeta Cacaso tematizou as transexuais no poema "Dentro de Mim Mora um Anjo", ele não imaginava que seus versos cairiam como uma luva para descrever o cantar de uma nova geração de vozes na música brasileira.
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A leva recente de transexuais e travestis a tomar os palcos, a exemplo das vocalistas do grupo As Bahias e a Cozinha Mineira e as cantoras Verónica Valenttino, Linn da Quebrada e Liniker -sem contar a drag queen Pabllo Vittar-, trouxe a reboque uma nova voz, que se relaciona de maneira peculiar com o sexo biológico de seus donos.
Assucena Assucena, da banda As Bahias e Cozinha Mineira, diz que, na infância, era pressionada para usar o timbre de acordo com o gênero de nascença -o masculino. "Me ensinaram que voz fina é de menina, e que quem nasce com pênis aprende a falar grosso. Mas, mesmo que a minha voz fosse grave, minha identidade não era aquela".
Ela conta que chegou a ouvir reclamações da sua família por só escutar cantoras mulheres, como Sandy e Whitney Houston. "Eu era a criança viada que corria pela casa cantando 'I Will Always Love You'." A faixa da americana, com longas passagens em falsete no refrão, ganhou o mundo em 1992 na trilha sonora do filme "O Guarda Costas".
Rita Maria, professora de canto de Assucena Assucena -e também de Raquel Virgínia, a outra vocalista trans do As Bahias- diz que não há diferenças entre ensinar vocalistas que trazem para a aula questões de identidade de gênero e cantores que não lidam com esse mesmo ponto.
No caso de Assucena e Virgínia, a professora diz que a voz está a serviço da performance e da expressividade e, por mais que ambas se inspirem em Gal Costa, elas não pretendem imitá-la. "O que ouço na voz delas é uma voz que não se limita. Não querem cantar igual a uma mulher, querem cantar igual a elas mesmas."
Assucena diz que, embora tenha buscado uma tonalidade mais feminina para o seu canto no passado, atualmente não tem mais a preocupação de deixar os graves de lado quando está no palco.
"O timbre em que vou cantar é de acordo com o eu lírico, com o personagem da música, com a sensação que quero passar. Hoje amo cantar grave, eu quero a voz da Ivete Sangalo, gravíssima. Temos que sair de certas formatações sociais, do que esperam que a gente seja", afirma.
Esses padrões sociais estabelecidos foram sentidos na pele -ou na voz- por Verónica Valenttino, a líder da banda cearense de disco punk Verónica Decide Morrer. Nascida menino, ela conta que, ao contrário de Assucena, nunca foi uma criança com voz grossa. A sonoridade delicada a levou a sofrer bullying.
Durante seus estudos de teatro, nos anos 2000, ela começou a assumir uma identidade feminina, processo que levaria à criação da banda, em 2010. Aos poucos, Valenttino passou a se identificar como mulher travesti, que define como "corpo bizarro, em transformação, que nega o masculino que me foi imposto".
Embora se inspire em Gal Costa, Ney Matogrosso, Elza Soares e Angela Ro Ro, Valenttino diz que a transição não fez com que mudasse conscientemente nem o timbre nem o tom com que canta.
"As pessoas imaginam que, se virou travesti, já tem que começar a anasalar a voz. Claro que a gente começa a descobrir um outro corpo, uma outra voz, mas isso não é forçado -é algo fluido e natural, que vem pelo empoderamento do gênero", ela afirma.
Pabllo Vittar, que lança seu segundo disco no início de outubro, também viveu essa tomada de consciência. "Na adolescência, minha voz bem mais aguda me fez sofrer muito", diz a cantora. "Hoje busco estudar para encontrar cada vez mais técnicas e locais da minha voz que não conhecia. Estou mais confortável, mais segura e entendo melhor a minha voz."