Mimo enfrenta crise, mas leva público numeroso a ruas de Olinda
Gismonti impõe atenção quase religiosa em show e Emicida e 47 Soul levam a militância ao palco
© Divulgação/Flickr oficial/Mimo
Cultura Festival
LAURA LEWER - OLINDA, PE - Berço de uma das festas mais tradicionais do país, a pulsante Olinda desviou, por alguns dias, o olhar do Carnaval que a projetou para o mundo e virou sua atenção para outro filho célebre, que comemorava seus 15 anos: entre sexta (23) e domingo (25), o protagonista da cidade foi o Mimo, evento multicultural gratuito que levou cerca de 20 mil pessoas por dia para suas ladeiras, ruas e igrejas.
Em sua edição de debutante, os motivos para celebrar -que incluem marcas como mais de 1,5 milhão de espectadores e 48 edições no Brasil e no exterior- extrapolaram o óbvio. A tônica de 2018 foi a resistência após a perda de patrocinadores e o adiamento das edições de São Paulo e Rio de Janeiro, que ficaram para o próximo ano.
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Nada disso, no entanto, pareceu importar ao público, que manteve fielmente a adesão aos concertos, exibições de filmes, aulas e fóruns de ideias promovidos pelo Mimo. Já na abertura, que ficou por conta de Hermeto Pascoal e seu grupo, notava-se algo de religioso no tratamento dado ao que acontecia ali -teoria comprovada pelo próprio multi-instrumentista, que afirmou que sua religião era a música à uma plateia que ocupava os bancos da secular Catedral da Sé.
Recém-premiado no Grammy Latino com seu "Natureza Universal" (2017), o alagoano tocou o teclado com os cotovelos e usou uma chaleira e animais de plástico como instrumentos musicais.
Na frente do altar e de imagens de santos, os alvos de veneração da sexta-feira (23) se tornaram Jota P., aplaudido em todos os seus solos de sopro, e Carol Panesi, igualmente elogiada por sua habilidade no violino e canto por uma plateia que incluía o escritor Luis Fernando Veríssimo, sentado na primeira fileira.
Encerrada a liturgia de Hermeto e sua big band na igreja, as pessoas que se reuniam a uma ladeira de distância dali, na praça do Carmo, deram boas-vindas à chuva, que resistiu até o fim da noite, e à banda instrumental portuguesa Dead Combo. Com repertório baseado no álbum "Odeon Hotel", lançado neste ano, o grupo apresentou sua união de rock, blues e fado a um ar faroeste e aqueceu o público para um bem humorado Tom Zé.
O show do baiano, que horas antes estreou o Fórum de Ideias mediado pela jornalista Chris Fuscaldo, pareceu ser a peça que faltava para dar sentido ao divertido (e difícil de acompanhar) fluxo de pensamentos da tarde, que passou por temas como sua infância, a origem da música, sua descoberta das palavras e a caretice do mundo.
No alto de seus 82 anos, o tropicalista dançante fez as clássicas peripécias, como em "Augusta, Angélica e Consolação", quando recomeçou a música para deixar claro para todo mundo que o que ele iria cantar era sim, poesia.
O sábado (24) se coroou como o principal e mais cheio dia do Mimo, além de exemplo perfeito da versatilidade da programação, que foi de Heitor Villa-Lobos à música palestina em questão de horas. A chuva deu lugar à enorme lua cheia ao lado de um dos cartões postais da cidade, a Sé, que mais uma vez era ocupada para um concerto que serviria para romper as barreiras entre a música popular e erudita.
Se na noite anterior o público demonstrava em gritos e aplausos constantes a admiração pelo grupo liderado por Hermeto, Egberto Gismonti e sua décima participação no festival inspiraram o silêncio sepulcral digno de uma igreja de 1540.
Durante a homenagem ao amigo Naná Vasconcelos, a conhecida "Carinhoso", de Pixinguinha, e "Miudinho", de Villa-Lobos, além de uma versão de Tom Jobim ao lado da cantora Grazie Wirtti, tudo o que se via e ouvia era um homem, seus instrumentos e a experiência de quase cinco décadas.
Em contraponto à calmaria do carioca, a já lotada praça do Carmo aguardava os shows pesados da 47 Soul, formada por palestinos e jordanianos, e do rapper Emicida. A primeira, estreando em solo brasileiro, fez seu som reverberar em todos os cantos possíveis com seu chamado shamstep, que mistura instrumentos eletrônicos e influências árabes.
O repertório em inglês e árabe não foi empecilho para o público, que rapidamente se entregou à "freedom music" do grupo, como chamou o front man Walaa Sbait, à liberdade da Palestina e aos pedidos de fim do fascismo, racismo e colonialismo.
Com território mais do que pronto, o paulistano Emicida subiu ao palco e se consagrou como o headliner do Mimo. Mais cedo, no Fórum de Ideias, falou sobre sua trajetória, empreendedorismo e os avanços no movimento negro para um Mercado Eufrásio Barbosa lotado.
"O hip hop mais profundo e verdadeiro é quando tem um microfone e a pessoa caminha até ele para dividir sua visão de mundo e é aplaudida depois", respondeu a um fã, que, emocionado, perguntou sobre a relação entre o rap e a comunidade LGBT. No palco, comprovou o que disse ao cantar sua história em músicas como "Mãe" e "Boa Esperança" e ser ovacionado.
Dia derradeiro do festival, o domingo (25) foi de celebração à cultura local. A rainha da ciranda, Lia de Itamaracá, abriu a noite com sua roupa azul brilhante, voz inconfundível e energia de uma jovem aos 74 anos.
Acompanhada por várias rodas formadas na praça ao longo do show, passou por músicas como "Mamãe Oxum", "Ciranda do Amor" e "Moreno Dengoso" e fez uma homenagem à vereadora carioca Marielle Franco para o público com idade mais variada do festival -na frente do palco estavam crianças, jovens e idosos com a mesma energia de Lia.
Quem fechou o Mimo foi a banda olindense de rock -e frevo, reggae e samba, entre outros- Eddie, que cantou seus mais de vinte anos de estrada para o público. Além de músicas do álbum novo, "Mundo Engano", produzido por Pupilo Menezes, do Nação Zumbi, a banda da casa também tocou as conhecidas "É de Fazer Chorar", "Pode me Chamar", e encerrou o Mimo com a clássica "Hino do Elefante de Olinda", trazendo o Carnaval de volta para a terra que também provou ser de todos os ritmos.
*A repórter viajou a convite do festival. Com informações da Folhapress.