Peças da Broadway abordam jornalismo e questionam a profissão
As montagens optam por questionar a ética na profissão
© iStock
Cultura Teatro
Em um momento em que os ataques contra a imprensa estão mais intensos e há maior desconfiança em relação às notícias, três peças da nova temporada da Broadway, nos Estados Unidos, trazem o jornalismo como tema.
Mas sem o romantismo que permeou produções recentes para o cinema, caso de "The Post" e "Spotlight" (este último, vencedor do Oscar de melhor filme em 2016). Em vez disso, as montagens optam por questionar a ética na profissão.
Uma das peças é "Network" ("Rede de Intrigas"), baseada no filme homônimo de 1976, que estreou em Nova York no início de dezembro após ficar em cartaz em Londres no ano passado.
Ficou a cargo do ator Bryan Cranston (o Walter White da série "Breaking Bad") dar vida a Howard Beale, âncora de televisão em baixa na carreira, mas que vira um fenômeno de audiência após se tornar uma espécie de porta-voz da fúria da população.
Com a metamorfose, o jornalista deixa de lado a objetividade e imparcialidade e apela para a emoção, a xenofobia e teorias conspiratórias em seu programa de notícias.
A cena na qual Beale incita os telespectadores (e a plateia) a gritar "I'm mad as hell and I'm not going to take this anymore" (eu estou com muita raiva e não vou mais aturar isso) é catártica –e um dos pontos altos da adaptação para o palco.
Logo surgem sorrisinhos, comparações e conexões com atitudes de Donald Trump e outros líderes populistas em ascensão ao redor do mundo ou com setores da imprensa que costumam apoiá-los. Isso mais de 40 anos após o lançamento do filme original.
A manipulação da verdade por corporações de mídia em prol de interesses escusos e a busca da audiência a todo custo, mesmo que isso signifique exibir um programa com os massacres patrocinados por uma organização terrorista, são alguns dos temas tratados no enredo.
"A televisão não é a verdade. A televisão é um maldito parque de diversões", diz o protagonista em uma das cenas reproduzidas do longa. A montagem, dirigida por Ivo van Hove, vencedor do prêmio Tony de melhor direção em 2016, tenta se manter fiel ao filme. Além de Cranston, compõem o elenco estrelado os atores Tony Goldwyn (da série "Scandal") e Tatiana Maslany (vencedora do Emmy por sua performance em "Orphan Black").
O cenário é composto por um estúdio de televisão e um bar. Quem pagar a bagatela de US$ 425 (mais de R$ 1.640) pode assistir à peça a partir do palco, em meio aos personagens e a pratos de petiscos. O que inclui também ficar a poucos metros de Goldwyn e Maslany enquanto simulam uma relação sexual no bar, cena capaz de deixar sem graça os espectadores mais envergonhados.
Para dar dinamismo à história, que se estende por duas horas sem intervalo, a equipe lançou mão de um telão no qual boa parte das cenas da peça é exibida ao vivo, gravadas por câmeras que acompanham os atores, fazendo jus ao mote da peça. Imagens de comerciais vintage de produtos para cabelo, tacos e sabão em pó também são mostradas na tela ao longo da montagem.
O espetáculo é também uma oportunidade para os nova-iorquinos, que tendem a ser mais democratas, destilarem a sua fúria contra Trump: no fim do show, são transmitidas imagens dos juramentos de presidentes americanos desde Jimmy Carter, que chegou à Casa Branca em 1977, um ano após o lançamento do longa.
Na sessão em que a reportagem esteve presente, Trump foi vaiado, enquanto Barack Obama era ovacionado. A outra montagem sobre jornalismo que está em cartaz na Broadway é a divertida "The Lifespan of a Fact" ("Tempo de Vida de um Fato"), que estreou em outubro.
Protagonizada pelos atores Daniel Radcliffe (o eterno Harry Potter), Bobby Cannavale ("Eu, Tonya") e Cherry Jones (que carrega dois prêmios Tony de melhor atriz), a comédia gira em torno de Jim Fingal, um obstinado e obsessivo checador de fatos de uma revista nova-iorquina que tem a missão de revisar um texto escrito por John d'Agata, um prestigioso escritor, sobre o suicídio de um adolescente em Las Vegas.
O jovem jornalista descobre, então, que a peça literária está repleta de erros e inconsistências -originalmente com 15 páginas, o texto passa a ter 130 com as anotações feitas pelo rapaz: algumas referentes a detalhes, como a cor do prédio do qual o menino se jogou; outras mais graves, como o fato de uma personagem citada no ensaio não ter morrido enforcada, mas por suicídio.
Vaidoso, D'Agata fica incomodado com o fato da revisão de seu texto ter sido delegada a um novato. Com a reestruturação da Redação, explica a editora da publicação vivida por Jones, o setor da revista dedicado apenas a checagens, com profissionais mais experientes, foi extinto.
D'Agata reluta em aceitar correções, alegando que as adaptações foram feitas para dar mais ritmo e "verdade" ao texto. Fingal, que vai parar na casa do escritor, em Las Vegas, o acusa de lavar as mãos para a precisão jornalística. E alerta que, na era das redes sociais, qualquer erro é capaz de se disseminar rapidamente e destruir reputações.
A peça é baseada em fatos reais. Em 2012, Fingal e D'Agata, que realmente existem, publicaram um livro sobre a história. A diferença é que, em vez de cinco dias, o processo de checagem demorou sete anos para ser concluído.
A tríade de montagens será completada com "Ink", que ficou em cartaz em Londres e chega a Nova York em abril de 2019. O enredo joga luz sobre a ascensão do magnata da comunicação Rupert Murdoch, que hoje controla a Fox News, emissora favorável a Trump. O espetáculo, porém, se passa na década de 1960, quando Murdoch comprou o tabloide britânico The Sun.
Para torná-lo o jornal mais lido do país e minar a concorrência, ele começa a investir em notícias popularescas e sensacionalistas, ligadas a fofocas, escândalos e sexo.
"Satisfaça e promova os mais básicos instintos das pessoas o quanto quiser", diz um dos personagens durante a peça, quando o The Sun começa a cair no gosto dos ingleses. "Ótimo, crie um apetite, mas esteja avisado: você terá de continuar a alimentá-los."