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Cinema recupera obra de James Baldwin, expoente do pensamento negro

Graças ao documentário "Eu Não Sou Seu Negro", do ano retrasado.

Cinema recupera obra de James Baldwin, expoente do pensamento negro
Notícias ao Minuto Brasil

17:14 - 04/02/19 por Folhapress/GUILHERME GENESTRETI

Cultura Lançamento

A rua Beale não dá as caras no romance "Se a Rua Beale Falasse", de James Baldwin, nem no filme inspirado nele, de Barry Jenkins. O local de Memphis que é indissociável da cultura do blues paira além de qualquer delimitação geográfica. Está lá como uma espécie de via crucis, atemporal e simbólica, da experiência do que é ser negro na América. A obra de Baldwin está embebida da cadência do blues - ora melancólica, ora efusiva, encapsula as chagas do racismo cotidiano e também a sua pulsão de resistência.

Graças ao documentário "Eu Não Sou Seu Negro", do ano retrasado, e ao drama de Jenkins, que estreia nesta quinta (7), o cinema tem ajudado a recuperar o legado do escritor nova-iorquino. Morto em 1987, ele foi a voz na literatura do grito da luta racial.

Nos Estados Unidos pós-Black Lives Matter e no Brasil pós-cotas universitárias, seus escritos encontram acolhida especial. Enquanto o longa "Se a Rua Beale Falasse" larga com três indicações ao Oscar, o romance de 1974 que o originou desponta entre "Terra Estranha" e "O Quarto de Giovanni", livros do autor que estão sendo relançados por aqui.

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"Com pegada literária, ele trazia temas que só depois seriam trabalhados nas ciências sociais", afirma o sociólogo Márcio Macedo, que assina o posfácio da nova edição de "Se a Rua Beale Falasse". "Ao desconstruir a noção de identidade, Baldwin foi um pós-modernista 'avant la lettre'."

Macedo se refere à forma como o escritor americano tornou ainda mais complexo o debate sobre o lugar do negro ao inserir elementos subjetivos como gênero, classe e sexualidade - hoje indissociáveis do debate racial. "Ele foi na contramão do 'essencialismo', de pensar essas questões no lugar-comum do preto e branco", diz o sociólogo.

Nascido em 1924, no Harlem, o bairro negro de simbolismo mítico em Manhattan, Baldwin foi pastor mirim, travou contato com a boemia da costa leste e excursionou pelos direitos civis quando os movimentos por eles pipocaram no fim dos anos 1950.

Homossexual, viu-se numa posição sui generis em meio ao contexto das marchas de Martin Luther King e acabou atraindo críticas virulentas de Malcolm X. Próximo de Nina Simone, o escritor é que teria despertado na cantora o engajamento político e ajudado a persuadir Robert Kennedy a apoiar o movimento.

A produção do autor, contudo, não se resume a denunciar as mazelas. Sua proximidade com o pintor Beauford Delaney lapidou um estilo literário rico, cheio de descrições sofisticadas e que era tributário das artes plásticas. O romance "Se a Rua Beale Falasse" reúne esses atributos e embala o que Macedo descreve como "epopeia afro-americana". Nele, Baldwin tece o estado da arte da trajetória negra nos Estados Unidos até o começo dos anos 1970.

Com o assassinato, na década anterior, de Martin Luther King e Malcom X, suas duas principais lideranças, o movimento dos direitos civis se encontrava numa berlinda.

O escritor inclui na obra reflexões sobre os horizontes que se desdobravam então, como a radicalização, materializada na luta dos Panteras Negras, e sobre o papel social das prisões, cada vez mais atulhadas de negros, conforme frisava a ativista Angela Davis.

É a cadeia a grande agrura da trama. Tish e Fonny são jovens namorados que se conheceram ainda pequenos no Harlem. Ao se mudar para o Village, área de maioria branca em plena ebulição da contracultura, o rapaz acaba sendo incriminado por um policial racista, que o acusa do estupro de uma imigrante latina.

Tish, a narradora, está grávida. Por meio das observações da moça sobre o entorno - os abismos da cidade, o papel da religião na comunidade, a rotina das famílias negras -, o escritor trata da desigualdade que perdura mesmo após o finda a segregação racial.

É natural que um romances desses tenha chegado às mãos do cineasta Barry Jenkins. Seus filmes anteriores, como o vencedor do Oscar "Moonlight", mostram preocupação em apreender as várias camadas da vivência dos descendentes de africanos nos EUA.

No longa premiado, ele desconstrói estereótipos da masculinidade, valendo-se do signo do "gangsta", o estilo que flerta com a marginalidade, embutido em um traficante homossexual criado num bairro depauperado de Miami.

É um esforço que marca a produção de diretores negros surgidos nas últimas décadas, como Dee Rees ("Pariah", "Mudbound") e Rashaad Ernesto Green ("Gun Hill Road"), e que, não por acaso, foram alunos de Spike Lee na Universidade de Nova York.

No filme de Jenkins, KiKi Layne e Stephan James interpretam o casal central da trama. Regina King, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante pelo papel, faz a mãe de Tish, Sharon, a sogra que assume a função de provar a inocência de Fonny enquanto a mãe dele sucumbe à religiosidade.

Após interpretar Tish, Layne foi escalada para "Native Son", recém-exibido em Sundance, outro longa inspirado na obra de conhecido escritor negro, Richard Wright. A história, que fala sobre um rapaz que comete assassinato após ser acossado pelo racismo estrutural, produziu impacto em James Baldwin.

Seu livro de ensaios mais famoso, "Notes on a Native Son", que em breve será publicado no Brasil, faz referência ao romance de Wright, que o autor chamava de "estereotipado".

Para "Se a Rua Beale Falasse", Barry Jenkins trocou o hiper-saturado das ruas banhadas pelo sol da Flórida de "Moonlight" um registro outonal de Manhattan e suas casas de tijolo, as "brownstones" imortalizadas nas fotografias de Roy DeCarava, apelidado de o Cartier-Bresson do Harlem.

Com o bairro cada vez menos negro, fruto da gentrificação que modificou o horizonte da cidade, o diretor disse ter penado para achar rastros da Nova York de Baldwin. Ficou restrito a algumas ruas.

Pouco restava daquilo que ele tinha lido nas páginas do livro: os bares de esquina em que as balconistas eram galanteadas, as janelas de onde as mães gritavam pelos filhos e as barbearias onde as garrafas passavam de mão em mão.

SE A RUA BEALE FALASSE

AUTOR James Baldwin

TRADUÇÃO Jorio Dauster

EDITORA Companhia das Letras

PREÇO R$ 49,90 (224 págs.)

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