'Teste' da intervenção, favela do RJ mantém medo e tráfico
O objetivo da intervenção ali é retirar barricadas instaladas pelo tráfico e garantir que serviços públicos e privados entrem na favela
© Divulgação / PMER (Foto de arquivo)
Justiça Segurança
Um militar das Forças Armadas com capacete, balaclava tampando o rosto, óculos escuros na fresta do gorro e fuzil na mão guarda uma esquina da favela Vila Kennedy, zona oeste do Rio, escolhida como laboratório da intervenção federal na segurança pública. Atrás dele, o muro de uma casa diz "faixa de gaza" e CV, sigla da facção que manda na área, o Comando Vermelho.
O objetivo da intervenção ali é retirar barricadas instaladas pelo tráfico e garantir que serviços públicos e privados entrem na favela. Porém quem se embrenha e permanece lá depois que os militares saem vê que o recuo do tráfico não tem sido completo.
O discurso da intervenção militar no Rio -decretada há um mês pelo presidente Michel Temer (MDB) ante à grave crise de segurança no estado- faz os moradores lembrarem de história parecida, a da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), que não acabou tão bem, gerando desconfiança sobre o projeto.
O trabalho na Vila Kennedy, segundo os militares, vai servir como modelo para futuras ações em outras favelas. Enquanto busca solucionar o assassinato da vereadora Marielle Franco, 38, (PSOL) e de seu motorista, Anderson Gomes, 39, que ocorreu na quarta (14), à noite, e causou forte impacto na opinião pública, a intervenção tenta também cuidar de seu laboratório.
Depois de seguidas operações e início de patrulhamento ostensivo, os militares consideram a favela estabilizada, jargão que significa que não há focos de resistência armada à presença dos soldados. De fato, não houve registro de tropas recebidas a tiros. O fato de a imprensa conseguir circular sem ser parada por traficantes é sinal de recuo.
No entanto, há limites. Na quarta, a reportagem foi instruída por um militar a não passar de certo ponto numa das principais vias da favela. No início da ação, militares retiravam barricadas instaladas pelo tráfico, e os criminosos as colocavam de volta.
Na quinta (15), novamente havia barricadas, mas essas, dizem as Forças Armadas, não haviam sido reinstaladas. Os militares apenas não haviam avançado até aquele ponto no patrulhamento. A reportagem também viu o que parecia ser um ponto de venda de drogas discreto funcionando numa parte da favela onde os soldados não estavam patrulhando. Os homens não estavam armados, como de costume, mas seguiam atuando. Segundo um morador, aquele local é, de fato, uma boca de fumo.
Quatro moradores disseram que a praça Miami, à beira da avenida Brasil, é tomada por vendedores de drogas à noite, quando o patrulhamento cabe à Polícia Militar. No início do mês, quando os soldados já faziam operações diárias, ladrões roubaram uma igreja da favela quando os soldados se retiraram. Um dia após outra operação militar, um idoso morreu vítima de bala perdida, e uma moradora foi baleada.
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No primeiro final de semana em que as Forças atuaram no patrulhamento, a PM matou um suspeito de envolvimento com tráfico de drogas. Policiais patrulhavam a área quando se depararam com criminosos. Houve confronto e um suspeito foi baleado.
MEMÓRIA DA UPP
Tudo isso faz os moradores lembrarem do que aconteceu com a UPP, o que gera desconfiança sobre a longevidade da ação. A favela foi ocupada em maio de 2014, de acordo com a coordenadoria da UPP, por 300 homens das forças especiais da PM "sem que fosse efetuado nenhum disparo".
"Veio um bando de coisa pra cá, Sebrae, Sesc, curso disso e daquilo. Não sobrou nada", diz Vinícius Pierre, 28, estudante de jornalismo que administra a página "Viva Vila Kennedy". Procuradas, as entidades citadas não se pronunciaram até a publicação desta reportagem.
A situação de segurança na favela desandou. Hoje tiroteios ali fecham frequentemente uma das duas clínicas de saúde de atendimento básico, que fica numa parte mais conflagrada da favela. O subcomandante da UPP foi morto a tiros em fevereiro, na estrada do Gabinal, em Jacarepaguá, na zona oeste.
Às margens da avenida Brasil, a Vila Kennedy inclui as comunidades Alto Congo, Vila Progresso, Sapo, Metral, Pica Pau, Light e Alto Kennedy. Foi escolhida como laboratório, até certo ponto, por conveniência. Segundo o Comando Conjunto, ela fica perto de unidades militares que têm efetivo grande, veículos e equipamentos. As máquinas usadas para retirar as barricadas, por exemplo, vieram dessas unidades.
A favela tem forte presença do tráfico. Na praça que fica na beira da avenida Brasil, placas de rua e paredes têm marcas de tiro. No entanto, dizem especialistas, não é tão inacessível para forças de segurança quanto lugares como os complexos do Chapadão, Pedreira e Alemão.
Um morador disse à reportagem que só fica quem não tem como sair. Porém, em termos socioeconômicos, não é a favela mais desassistida do Rio.
Dados do Ipea mostram que, em 2010, tinha IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) de 0,714. Está na metade superior do ranking, na 1.250ª posição entre as 2.229 Unidades de Desenvolvimento Humano do Rio. A favela vizinha, Vila Aliança, onde as Forças Armadas fizeram operação, mas foram recebidas a tiros, tem marca inferior, com índice de 0,686.
Na Vila Kennedy, tem uma Unidade de Pronto Atendimento, que cuida de emergências, e duas clínicas de saúde básica. Essa estrutura médica funciona de maneira precarizada no momento, mas isso se deve mais à crise dos cofres públicos.
Há duas escolas estaduais e uma vila olímpica com campo de futebol e aulas de pilates. Uma escola técnica ficou pronta em 2014, mas até hoje não abriu as portas, de acordo com a fundação, devido grave à crise econômica enfrentada no estado.
No sábado (17), as autoridades estaduais e municipais fizeram lá um mutirão de prestação de serviços. "Muita gente precisa. Mas ainda é pouco para o bairro. Pelo menos estão dando um passo, sem armas", diz Vinícius. Com informações da Folhapress.