Camarotização: por que o brasileiro gosta tanto de segregar o espaço?
Para especialista, o acesso das camadas mais populares ao que antes era exclusivo da elite fez com que o racismo e discriminação "saíssem do armário"
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Camarotização. A gourmetização do espaço. A palavra ganhou força na última semana depois de aparecer no tema da redação do vestibular da USP, o mais concorrido do país, mas já faz tempo que o camarote faz sucesso ao prometer fazer do cidadão um ser diferenciado – para usar uma palavra cara ao público adepto.
De comícios políticos
à farra do Carnaval, quem está no camarote não quer ser qualquer um. Em Salvador, no maior carnaval do mundo, participa quem paga - e caro- para ter direito a uma camiseta estampada com diversos logos dos patrocinadores. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, para ter acesso ao espaços exclusivos no Carnaval é preciso desembolsar até mais de 1.000 reais.
A promessa é viver a festa rodeado de celebridades rodeadas de jornalistas. Os famosos mais
trendy, porém, ficam em um cercadinho ao qual quase ninguém tem acesso. É a camarotização do camarote.
O Carnaval foi um
start, mas não está sozinho no movimento de camarotização do país. Um dos lugares que lideram o ranking dos mais camarotizados do Brasil também está na Bahia: Trancoso. Há
20 anos era uma praia de pescadores, semideserta, só alcançada por aventureiros (inclusive os endinheirados tradicionais) e hippies. Agora, nas palavras da jornalista e consultora de moda Gloria Kalil, no Réveillon, virou uma espécie de “Cannes tropical”.
“Daqui a pouco, os moradores e antigos frequentadores só vão poder entrar no pedaço se estiverem com um vestido de marca, uma maquiagem de palco e um crachá que os autoriza a circular como no melhor estilo Festival de Cannes em dia de premiação final”, disse Kalil, em sua coluna.
A camarotização, neste caso na política - com seus cercadinhos
em cerimônias oficiais e comemorações -, também horroriza Andrea Matarazzo (PSDB), vereador que carrega o sobrenome de uma família da alta sociedade paulistana. “Getúlio Vargas fazia sucesso porque andava no meio do povo”, conta ele. “O Lula, idem”, diz. “E eu adoraria ser o Lula”.
Acesso e renda
Mas, afinal, de festas a eventos públicos, por que o Brasil gosta tanto de segregar o espaço? Para Rosana Pinheiro-Machado, antropóloga e professora da Universidade de Oxford, a aversão à mistura é o resultado de anos de desigualdade social no país. "O que está por trás [da camarotização] é o desejo de distinção em uma sociedade colonizada como a nossa e marcada por uma grande estratificação social", diz.
"O Brasil sempre foi avesso e segregado. Apesar de ter a ideologia da mistura, na verdade sempre foi o pior dos apartheids", diz a antropóloga brasileira. Para ela, o acesso das camadas mais pobres da população ao que antes era exclusivo dos mais ricos potencializou a camarotização. "No Brasil pós-Lula, as pessoas das camadas mais populares estão acessando o que antes era exclusivo aos brancos de elite", conta. "Isso faz com que o racismo e a discriminação saiam do armário." Por outro lado, "é também um fenômeno de todas as classes. O cara mais rico de uma comunidade quer camarote também. Afinal, o modelo hegemônico de distinção é pervasivo, se espalha."
É nos aeroportos que esse desconforto com o acesso fica explícito, diz Pinheiro-Machado. Antes, andava de avião quem tinha muito dinheiro. Com a ascensão da classe média, os aeroportos estão mais cheios, e os mais ricos tiveram que se misturar aos mais pobres. As companhias aéreas logo correram para tentar reverter isso: "As companhias aéreas brasileiras, que nos últimos anos só tinham a classe econômica, agora voltam a ter assentos 'diferenciados', mais caros e com mais espaço", diz a professora. "O conforto, na verdade, é apenas uma desculpa apara agradar o passageiro rico que não quer ter o desprazer de sentar ao lado de
sua empregada doméstica", explica. "É uma forma sutil de segregação."
A fuga dessa segregação no avião se reflete em um dado econômico do país: o Brasil está em segundo no ranking das maiores frotas de jatinhos e helicópteros particulares do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.
Para usar um termo popular nos camarotes - se é que podemos usar as palavras popular e camarote na mesma frase -, o que
"agrega valor", além de camarotizar, é exibir o ato, com ou sem pau de selfie. Cesar Giobbi, colunista social há décadas, culpa as redes sociais pelo exibicionismo adotado pela elite.
“A indiscrição surgiu com a comunicação exacerbada”, diz.
Para Giobbi, a camarotização é o primeiro indício de que o lugar está decadente. Primeiro, um lugar como Trancoso se populariza, então é preciso camarotizá-lo para não perder o elã diferenciador, mas aí ele já perdeu a graça para a primeira elite que o frequentava como exclusivo.
“Quando chega nesse auge, em que o absurdo passa a ser incorporado, o lugar perde a graça”, diz. “Sapato de salto Louboutin no Quadrado não precisa. Tudo tem lugar e hora”, conta. Em tempo: “Quadrado” é o apelido usado pelos habitués de Trancoso, os de antes da camarotização, porque o local foi habitado inicialmente em torno de um gramado quadrado.
E no embate camarotização x
pipocação, às vezes os da pipoca parecem se divertir mais. Na corrida de São Silvestre, que ocorre há mais três décadas no último dia do ano em São Paulo, pode-se pagar pela inscrição – 135 reais – ou correr na pipoca. Os pró-segregação reclamam da “bagunça” e dizem: “paguei 135 reais e é essa zona”, irritados. Enquanto isso, a maioria – inscrita ou não – se diverte. Fantasiados, eles vão ao longo trajeto de 15 quilômetros desfrutando da sensação de correr na Avenida Paulista – e não é fugindo da polícia em alguma manifestação – e de se sentir parte da cidade.