Para combater fake news sobre vacina, Biden abre guerra contra redes sociais
Há duas semanas, indagado sobre qual mensagem daria para plataformas como o Facebook em relação a desinformação, o presidente americano disparou: "Elas estão matando as pessoas"
© JIM WATSON/AFP via Getty Images
Mundo EUA-GOVERNO
PATRÍCIA CAMPOS MELLO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O governo de Joe Biden declarou guerra contra as redes sociais por causa da avalanche de notícias falsas sobre vacinas que circulam na internet –o que tem atrapalhado o progresso da vacinação nos EUA e ameaçado a agenda do democrata.
Há duas semanas, indagado sobre qual mensagem daria para plataformas como o Facebook em relação a desinformação, o presidente americano disparou: "Elas estão matando as pessoas", sugerindo que as empresas têm responsabilidade pela recusa à vacina. Depois, ele suavizou um pouco o recado e disse que havia se referido a disseminadores de notícias falsas nas plataformas, e não às próprias companhias.
Um dia antes, o diretor de Saúde Pública dos EUA, Vivek Murthy, havia divulgado um alerta no qual afirmava que a desinformação era responsável, ao menos em parte, pela rejeição às vacinas contra Covid-19. Publicar um alerta de saúde pública sobre o tema foi um passo sem precedentes na história americana, que colocou a desinformação no mesmo patamar do cigarro e dos opiáceos como riscos à saúde.
Biden havia prometido vacinar com a primeira dose 70% dos adultos acima de 18 anos até 4 de julho, data de comemoração da independência americana. Além de não conseguir cumprir a meta, a vacinação está avançando muito lentamente e vários especialistas afirmam que ela não deve subir muito em relação ao nível atual –69,6% dos adultos receberam ao menos a primeira dose. As imunizações diárias, que tiveram um pico de 3,3 milhões de doses aplicadas em abril, agora baixaram para cerca de 550 mil por dia.
Em estados do Sul e do Meio-Oeste dos EUA, regiões onde há muitos governadores republicanos, a imunização patina. No Mississippi, por exemplo, apenas 50% da população recebeu a primeira dose. Já na Pensilvânia, que fica no Nordeste do país e é governada por um democrata, 78,2% dos adultos estão parcialmente imunizados.
Uma pesquisa realizada pelo jornal The Washington Post e pela rede de TV ABC News no início de julho apontou que 86% dos que se declaram democratas já tinham recebido a primeira dose da vacina, diante de apenas 45% dos republicanos. E o mais grave: enquanto 6% dos democratas afirmaram que não pretendiam se vacinar, 47% dos republicanos disseram que iriam recusar a imunização.
Para a Casa Branca, a hesitação vacinal alimentada pelas notícias falsas que circulam nas redes sociais –e que são disseminadas por canais de TV de direita, como Fox News, Newsmax e One America News– é o principal obstáculo para os EUA alcançarem a imunidade de rebanho.
E, com o avanço da variante delta, que é muito mais contagiosa e já responde por 83% dos casos nos Estados Unidos, cresce a probabilidade de partes do país terem que voltar a adotar medidas de restrição, o que atinge em cheio a economia americana.
Isso arruína os planos de Biden de virar a página em relação à pandemia e focar nas outras prioridades de seu governo –investimento em infraestrutura, imigração, desarmamento e reforma da polícia.
Em sua investida contra as chamadas big techs, o governo Biden citou um relatório divulgado em março pelo CCDH (sigla para centro de combate ao ódio digital). O estudo apontou que 12 influenciadores eram responsáveis por 65% de toda a desinformação antivacina circulando nas redes sociais. Segundo o texto, esses grupo atingia uma audiência de 62 milhões de seguidores e gerava US$ 1,1 bilhão (R$ 5,7 bilhões) de faturamento para as plataformas.
Quatro meses após a divulgação do relatório, grande parte da desinformação continua online. "O Facebook e as plataformas não fizeram o suficiente para reparar o dano desde a publicação do relatório; [as empresas] derrubaram contas e reduziram o alcance de conteúdos, mas o material ainda atinge milhões de pessoas", disse à reportagem Imran Ahmed, diretor-executivo do CCDH.
O Facebook reagiu às críticas do governo dizendo que não é responsável pela hesitação vacinal. A empresa citou uma pesquisa que mostra que 85% dos usuários da plataforma foram vacinados ou pretendem se vacinar e informou ter derrubado 18 milhões de conteúdos antivacina. A rede, assim como o Twitter e o YouTube, também vem promovendo conteúdos de autoridades de saúde com informações corretas sobre a Covid e os imunizantes.
Mas especialistas questionam a transparência das ações do Facebook, que não especifica quantas pessoas foram atingidas por esses 18 milhões de conteúdos falsos antes que eles fossem removidos.
Uma pesquisa feita pela revista The Economist e pelo instituto britânico YouGov em julho apontou que, entre os americanos que não pretendem se vacinar, 90% dizem temer os efeitos colaterais da imunização. Desses, 50% afirmam acreditar que vacinas em geral causam autismo e que a de Covid é usada pelo governo para implantar um chip nas pessoas.
Diante da dificuldade de fazer a imunização avançar, empresas e alguns governos locais estão exigindo que seus funcionários se vacinem –o que acabou gerando uma onda de teorias da conspiração.
Com tudo isso, a desinformação antivacina foi a gota d'água para um governo que já estava pronto para escalar sua briga com as redes sociais. Os democratas não engoliram até hoje o papel do Facebook e Twitter na eleição de 2016, quando perfis falsos e bots ligados à Rússia foram usados para enxovalhar a então candidata democrata Hillary Clinton e ajudar na vitória de Donald Trump.
Depois, em 2020, as redes sociais e TVs conservadoras foram os principais veículos para o republicano e seus apoiadores espalharem suas acusações infundadas de que as eleições teriam sido fraudadas –e, após a derrota, de que o pleito tinha sido roubado.
Isso culminou com a invasão do Capitólio em 6 de janeiro por apoiadores de Trump. Por ter incitado manifestantes, o republicano teve suas contas suspensas por Twitter, Facebook e Instagram após o caso.
Embora por motivos diferentes dos democratas, os republicanos também exigem um maior escrutínio das gigantes da internet –desde a suspensão de Trump, ganhou ainda mais tração a acusação entre seus apoiadores de que as redes censuram vozes da direita.
Em julho, o ex-presidente Trump entrou com um processo contra Twitter, Facebook e Alphabet (dona do Google), alegando que as empresas violam a Primeira Emenda da Constituição americana ao silenciar pontos de vista conservadores.
No coração da discórdia está a Seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações de 1996, legislação que permitiu o crescimento da internet nos EUA. Esse trecho estabelece que as plataformas não podem ser responsabilizadas por conteúdo publicado por terceiros, uma vez que não são consideradas publicadores como jornais e TVs, apenas distribuidores.
Além disso, na cláusula batizada de "Bom Samaritano", a lei exime as empresas de responsabilidade civil por removerem ou restringirem conteúdo, caso ajam "de boa fé" e considerem que as postagens sejam "obscenas, lascivas, excessivamente violentas".
Em maio do ano passado, após ter postagens sobre "fraudes com votos pelo correio" rotuladas pelo Twitter como falsas, Trump baixou um decreto impondo responsabilização das plataformas por publicações de conteúdos de usuários e remoção de contas e posts, revertendo a Seção 230. Ele acusou as empresas de "sufocar o debate livre e aberto e censurar certos pontos de vista". O decreto foi anulado por Biden em maio deste ano, mas a Casa Branca afirmou que está discutindo medidas que modifiquem a seção 230.
Essa revolta bipartidária contra as plataformas gerou ao menos 27 projetos de lei com mudanças ou a eliminação da seção 230 e exigências de modificação e transparência nos algoritmos usados pelas redes.
"O Congresso poderia regulamentar medidas contra desinformação ao condicionar a imunidade proporcionada às plataformas pela Seção 230 ao processo de investigar, identificar e remover conteúdo desinformativo", diz Jonathan Peters, professor da Faculdade de Jornalismo e de Direito da Universidade da Geórgia. "Mas ainda acho que seria difícil [aprovar uma legislação sobre o tema], porque a política do Congresso tem sido de não regular pesadamente a internet e deixar que os sites fiscalizem seu próprio conteúdo."
Por último, há ainda uma uma ofensiva antitruste contra as plataformas. Biden indicou dois críticos das big techs para liderar iniciativas contra a concentração de mercado, e o Departamento de Justiça abriu, ainda na gestão Trump, uma investigação contra Facebook e Google sobre o tema.
Toda essa guerra nos Estados Unidos ecoa também no Brasil. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e seus aliados, que tiveram diversas postagens removidas ou rotuladas nas redes sociais, pregam um maior controle sobre as plataformas de internet, que acusam de fazer censura contra políticos de direita.
Em maio, veio a público a minuta de um decreto presidencial que proíbe as redes sociais de suspenderem contas e de removerem ou rotularem conteúdo sem autorização judicial prévia.
A proposta de reforma eleitoral tramitando na Câmara proíbe o cancelamento ou a suspensão de perfil ou conta de candidato durante o período eleitoral. A ideia é semelhante a uma lei aprovada no estado americano da Flórida e derrubada na Justiça.
Já a oposição no Brasil, como os democratas, cobra mais ação das plataformas para brecar a desinformação, especialmente em relação à Covid e a supostas fraudes eleitorais.
"Tanto no Brasil quanto nos EUA, governo e oposição concordam que existe um problema em relação às plataformas de internet e isso precisa ser resolvido; mas, tanto lá quanto aqui, não existe um acordo sobre qual seria a melhor solução", diz Carlos Affonso Souza, Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS).