Populista de direita britânico ensaia moderação e perde apoio de Musk
Na corrida parlamentar do ano passado, quando os trabalhistas impuseram a maior derrota da história aos conservadores, o dono do Reform UK tinha mais engajamento e visualizações do que qualquer outra sigla ou adversário
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Mundo NIGEL-FARAGE
(FOLHAPRESS) - O vídeo de quase seis minutos começa com uma imagem da fachada de Blenheim Palace, local de nascimento de Winston Churchill. "Ele representa algo De quando este país era de fato grande." Dentro do palácio, Nigel Farage cita o maior político da história britânica, figura que o inspira agora a enfrentar o "momento mais difícil do mundo" que seus 60 anos de vida já assistiram.
É sua mensagem de fim de ano, publicada no X. As bandeiras polêmicas e radicais, brexit, política anti-imigratória, antiambientalista, estão todas lá, mas empacotadas em formato de estadista. Farage quer ser o próximo primeiro-ministro e de maneira polida, quase pedagógica, descreve o Reino Unido como uma "sociedade em declínio" que precisa de alguém do porte de Churchill: ele, é claro.
Um outro vídeo, de apenas seis segundos, aparece logo depois da mensagem oficial por obra de um seguidor. Farage, em um mercado público, anda até uma banca de frutas, olha para a câmera e dispara o bordão malicioso que o transformou em um fenômeno do TikTok: "lovely melons". A referência é para outro campeão de likes. Em 2022, a então candidata a premiê na Itália, Giorgia Meloni, pede votos segurando dois melões na altura do peito. O populismo na era digital se retroalimenta em proporções nunca vistas.
Aos "adoráveis melões", o seguidor acrescenta outras cenas de puro Farage: copos de cerveja, milk-shakes, McDonald's, cigarros, charutos, celebridades, mulheres jovens, gargalhadas. "Nigel Farage nasceu para ser uma estrela do TikTok", escreveu o jornal The Guardian, em julho, tentando explicar como a voz mais estridente do brexit, xenófoba e antiglobalista, se reinventou na rede social que um dia foi de adolescentes.
Na corrida parlamentar do ano passado, quando os trabalhistas impuseram a maior derrota da história aos conservadores, o dono do Reform UK tinha mais engajamento e visualizações do que qualquer outra sigla ou adversário. Dono, no caso, não é força de expressão. Depois de desistir do Ukip, o partido pelo qual navegou durante a campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia, Farage montou uma empresa em 2018, ou "startup empreendedora", como define, para alçar sua carreira política.
O Partido do Brexit passou por um "rebranding", anos depois, e se transformou no Reform UK, a nova expressão do populismo britânico. O esquema deu a Farage amplos poderes sobre a legenda, algo que não tinha no Ukip. O político e o empresário Richard Tice abdicaram das ações da empresa em setembro em favor de uma organização sem fins lucrativos, "um partido político normal".
O Reform UK obteve cinco cadeiras no Parlamento, uma delas de Farage, que divide a agenda parlamentar com a carreira de comentarista político na TV, em outro arranjo exótico criticado por adversários. Ele aparece três vezes por semana no GB News, canal de notícias de direita e deficitário bancado por Paul Marshall, dono de um dos principais fundos de investimentos de Londres.
O GB News já foi advertido várias vezes pela Ofcom, a agência reguladora britânica, por falta de parcialidade. Pelas regras, políticos não podem apresentar notícias pela TV, mas são permitidos em outros tipos de programação. No poder, o Partido Trabalhista estuda endurecer a legislação eleitoral, tanto no caso dos duplos empregos no Parlamento (Farage está longe de ser o único) como na questão das doações.
A discussão é antiga, mas agora ganhou um argumento de peso chamado Elon Musk. O bilionário é desafeto de Keir Starmer, o primeiro-ministro, com quem vem trocando farpas desde a eleição de 2024. Nos tumultos de julho, alimentados por extremistas de direita, Musk usou o X para criticar o premiê e a nova legislação britânica sobre redes sociais.
Como vem fazendo em diversos países, inclusive no Brasil, o bilionário disparou postagens ofensivas contra o governo Starmer, um "estado policial". Dezenas de pessoas foram presas por incitar violência nos protestos e ódio racial nas redes sociais, resultado de uma tendência legislativa que preocupa Musk.
Há alguns dias, o empresário fez uma série de postagens para pedir a libertação de Tommy Robinson, líder nacionalista radical e anti-islâmico, que cumpre pena de 18 meses por difamar um refugiado sírio. O ato surpreendeu, mesmo para os padrões da direita britânica. "Não precisamos disso", disse Farage, em seu programa de TV.
Musk respondeu neste domingo (5), afirmando que Farage "não tem o que é preciso" para ser líder do Reform UK. O populista, além da ponderação sobre Robinson, não aderiu a outra onda recente criada pelo bilionário, que desencavou um caso antigo de pedofilia, de uma época em que Starmer era o chefe do Ministério Público britânico, na década passada.
Pessoas diretamente afetadas pelo episódio afirmaram ao Guardian que Musk fabrica uma polêmica que não existe, como tantas nos últimos meses. "Eu não concordo com tudo que ele defende", declarou Farage à BBC. Buscou, porém, contemporizar com Musk, descrevendo-o como "um heroi" pela defesa intransigente da liberdade de expressão.
Musk era cortejado para transformar o Reform UK em uma legenda que pudesse fazer frente ao tradicional Partido Conservador. O populista participou de eventos da campanha de Donald Trump nos EUA e se encontrou com bilionário em Mar-a-Lago, o resort do presidente eleito na Flórida.
Não há limite legal para doações na política britânica. Mas o quanto cada partido pode gastar durante a campanha é controlado. Fora do período eleitoral, trabalhistas consumiram 30 milhões de libras (R$ 230 milhões), e conservadores, 60 milhões (R$ 460 milhões), nos últimos anos, segundo levantamento do Financial Times.
O dispêndio anual do Reform UK não passa de 1 milhão (R$ 7,68 milhões). O cheque de Musk poderia chegar a cem vezes esse valor, segundo apurações da imprensa britânica. "Essa cifra é um grande exagero", declarou Farage na sexta-feira (3).
A musculatura financeira daria estrutura para a sigla tentar um número maior de cadeiras em eleições futuras. O Reform UK obteve 1% dos assentos, mas mais de 14% dos votos. Em um cenário político antes dominado por dois grandes partidos, conseguiu ser segundo lugar em 98 de 650 distritos. Nas pesquisas de opinião, subiu de 14% das preferências na época das eleições para 21% agora. Trabalhistas e conservadores alcançam 26% cada. Somados, os adversários históricos tiveram o pior desempenho da história em 2024.
Números que uma campanha focada, mais preocupada em fazer assentos do que no total de votos, repetiria a receita dos liberais-democratas, a terceira força do Parlamento. Pelo espectro político, o espaço natural de ampliação seria a direita moderada dos conservadores, em crise existencial desde o fim do governo de Rishi Sunak.
Farage, nos últimos dias, exercita uma de suas habilidades, o bate-boca, com a nova líder da sigla. O Reform UK teria ultrapassado os Tories em número de filiados no fim de 2024, 142 mil contra 131 mil. Kemi Badenoch diz que o populista mente e agora sofre uma ameaça de processo judicial.
Nas casas de apostas, ele também tem desempenho melhor que a rival como sucessor de Starmer em 2029. Contra o trabalhista, o alvo do momento, mais do que a imigração, são as políticas de transição energética e net zero, com grande potencial de apelo popular.
Com ou sem dinheiro de Musk, o primeiro teste do "partido normal" de Farage são as eleições regionais deste ano, em que o populista espera angariar pelo menos uma prefeitura e dar estatura nacional à legenda. Para Tice, o vice-líder do Reform UK, a sigla já ganhou a batalha das redes sociais. "Temos que ir agora para a disputa de campo, e isso custa dinheiro."
Na mensagem de fim de ano, Farage sublinha seu slogan de campanha, "Make Britain Great Again", que em inglês funciona melhor do que o MAGA de Trump. Uma nova Grã-Bretanha é "a chance que resta de salvar o ocidente". Falta apenas combinar com Musk e seu público radicalizado que, sem moderação, ainda não se faz um primeiro-ministro. Pelo menos por enquanto.
QUEM É NIGEL FARAGE
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Vida pessoal
Nasceu em Kent, em 3 de abril de 1964. O pai abandonou a família quando ele tinha 5 anos. Frequentou escola particular, mas trocou a universidade pelo mercado financeiro. Está no segundo casamento, tem quatro filhos e um neto. Adora críquete.
Carreira política
Foi membro do Partido Conservador, do Parlamento Europeu, fundador e líder do Ukip e fundador e lider do Reform UK. Eurocético, foi uma das vozes mais ativas na campanha do brexit, em 2016. Desde 2024, é membro do Parlamento por Clacton. É conhecido por posições xenófobas, anti-imigração, antiambientais e antiglobalistas.
Carreira na mídia
Desde 2017 contribui como comentarista para a Fox News, o canal mais conservador dos EUA. De 2017 a 2020, teve um programa de rádio na LBC. Em 2019, em uma das datas do brexit, entrevistou o então presidente dos EUA, Donald Trump. Desde 2021 apresenta um programa próprio no canal GB News, outro veículo de direita. Em 2023, participou de um reality show na ITV. Alcançou a terceira colocação.
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