A história dos '40 magníficos' que impediram fuga de 26 mil crocodilos
Com o ciclone Idai, o muro que prendia os animais caiu e, por pouco, eles não escaparam
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Mundo Moçambique
O português Manuel Guimarães tem no centro de Moçambique uma fazenda com 26 mil crocodilos, com muros que o ciclone Idai derrubou. Só 40 "homens magníficos" impediram a saída dos animais e uma "desgraça terrível".
Passada mais de uma semana após o ciclone, que provocou centenas de mortes e milhares de desalojados, devido ao vento e às cheias, pouca gente sabe que foram esses 40 homens que, na noite do ciclone, iam substituindo o muro à medida que ele caia. Assim, impediram que tivessem 26 mil crocodilos à solta na zona da Beira. Mas Manuel Guimarães sabe, e a sua gratidão não tem palavras.
Agora que a chuva parou e o local já não está cercadp pelas águas Manuel Guimarães voltou na segunda-feira (25) ao local, Nhaugau, distrito da Beira, emocionado por ver como uma noite de vento lhe destruiu 10 anos de trabalho. Ali estava Anísio Chinguvo e os outros "magníficos", cortando árvores, limpando a terra, repondo o que é possível repor.
Anísio, natural de Maputo, trabalhando para Manuel Guimarães há uma dezena de anos, se lembra bem do dia 14 de março, de quando "o patrão ligou informando" que tinham que se preparar para um vento muito forte. Anísio, como conta agora, pensou que era brincadeira, que ventos fortes ele já tinha visto em 2000, em 1977. E Manuel Guimarães do outro lado: "Anísio, não brinca, você vai ver o que nunca viu".
Os 40 trabalhadores colocaram nesse dia chapas isotérmicas junto da cerca dos crocodilos, feita de tijolos e cimento, especialmente perto da cerca dos maiores crocodilos, e aguardaram o Idai. Nenhum saiu dali, nenhum foi para perto das famílias.
E na noite de quinta-feira, 14 de março, quando o Idai chegou encontrou os 40 ali, sentados ou deitados por causa da força do vento.
"Não foi fácil, falar disto dói muito. Cada um pensava, eu vou perder a minha família, os meus filhos, para defender um crocodilo. Doeu, porque duas noites perdidas não e fácil"
Foram duas noites sem dormir, mas especialmente difícil a noite do ciclone, como Anísio conta à Lusa, ao lado do muro dos grandes crocodilos, que o vento conseguiu derrubar e que agora está substituído por chapas.
Porque não bastava estar ali, porque era preciso ir ver outros tanques, ver se as árvores que caiam não derrubavam outros muros. Mas aquele muro, aquele especialmente dos crocodilos grandes. "Não podíamos estar longe do muro".
"Sabíamos que se o muro desabasse era um desastre total, não era fácil controlar estes animais lá fora".
E a verdade é que noite dentro, quando o muro cedeu eles ali estavam, prontos a empurrar as chapas que tinham levado, cortando bambus para as segurar. E por volta das 5h de sexta-feira, horário local, o vento diminuía e os crocodilos estavam em seus tanques.
"Estávamos fazendo o nosso salário, para próximos anos, não só deste mês de março mas para os próximos anos. Imagina se todos os crocodilos fossem embora, eu não estava aqui, estava na minha casa porque não tinha serviço", diz agora o chefe dos 40 heróis.
Já passou mais de uma semana e Manuel Guimarães, 63 anos, ainda se emociona quando fala dos seus "40 magníficos".
Se os crocodilos tivessem saído, se tivessem galgado o perímetro da quinta, os 10 quilômetros de valas que a rodeiam, "era grave", era "uma situação de pânico total".
"Estaríamos todos, uma cidade inteira, caçando crocodilos, a comunidade internacional. Porque era impensável 26 mil crocodilos à solta, especialmente os grandes".
O empresário lembra também a prevenção com os painéis e se emociona até às lágrimas quando fala dos seus "40 bravios moçambicanos" que se sentaram ali perto dos muros, olhando de frente o ciclone e preparados para os substituir com chapas quando eles caíssem.
"É graças a esses 40 homens, que nunca mais podemos esquecer, que não temos uma desgraça para a empresa, porque 26 mil crocodilos são muitos milhares de dólares, e uma desgraça para a população, porque já viram o que era 26 mil crocodilos aí à solta? Seria terrível. Felizmente graças a eles estamos aqui, podemos falar disto que aconteceu", diz à Lusa.
E acrescenta: "Quando havia muito vento, se sentavam ou se deitavam e na hora em que os muros caiam, eles repunham as chapas. É uma história que precisa de ser contada para mostrar que na hora em que é preciso os moçambicanos estão lá. Deixaram as suas casas, os filhos, as famílias, perderam tudo, para estar aqui a defender a fazenda, e isso não tem valor".
Mas Manuel Guimarães ainda tem mais um herói no currículo, um que o faz chorar ainda mais. Chama-se João e esteve ocupado levando uma manada de vacas para locais altos, por causa das águas, não estando lá quando os seus quatro filhos, o mais novo de dois e o mais velho de 11 anos, foram levados na corrente.
"Quando eu lhe perguntei 'como é que estão os animais' ele disse 'patrão, não perdi os animais, mas por conta de estar lá perdi os meus quatro filhos'"
João ficou na fazenda encaminhando os animais para lugares altos, eram 2.000 e o lugar alto do costume não era suficientemente alto desta vez. E a água chegou depressa. Na fazenda de Nhamatanda, relata citando os trabalhadores, "de manhã estava no sapato, uma hora depois nos joelhos, meia hora a seguir na cintura e uma hora mais e estavam fugindo para cima das árvores". "Eu nunca vi isto, estou aqui há 25 anos, nunca a água atingiu estes níveis".
Há 25 anos Manuel Guimarães veio por três meses, para exportar camarão. Hoje é um dos maiores criadores de gado de Moçambique, exporta camarão para Portugal, as suas empresas foram distinguidas como as segundas maiores Pequenas e Médias Empresas no âmbito da exportação e da exportação de produtos de mar.
O projeto dos crocodilos foi pensado para minimizar a perda de vidas humanas e mediante um acordo com o Governo foram recolhidos ovos para desenvolver a fazenda. As peles e os produtos derivados são vendidos para Portugal, Itália, Coreia do Sul e Japão. Os sapatos são feitos em Portugal e as bolsas na Itália.
A fazenda dos crocodilos foi crescendo, era agora também um restaurante e já estava começando um projeto de ecoturismo, com duas casas em madeira prontas. "Era uma fazenda linda", crescendo devagarinho, "com gosto", um trabalho de 10 anos, "e um dia desapareceu tudo".
Mas não só. No distrito de Buzi perdeu todos os animais e em Nhamatanda calcula que meio milhar. E a fazenda dos crocodilos está lá mostrando as suas desgraças, árvores caídas, casas destruídas, armazéns derrubados. Acabou o restaurante, a piscina, o "paint ball", o ecoturismo. Tudo feito com "tanto gosto".
Mas é o de menos, porque o que não lhe sai da cabeça é o empregado João. Tem ajudado na procura dos corpos dos filhos, mas até domingo ainda não os tinham encontrado.
Ele vai construir uma casa ao "senhor João", vai dar um terreno. Quando o diz, se emociona de novo. E acrescenta depois: "mas nunca posso devolver os filhos".
A Manuel Guimarães faltam palavras para agradecer ao empregado João e aos "40 magníficos" da fazenda dos crocodilos.
E por causa deles, com a ajuda deles, não tem dúvidas. Não é "um ciclonezito de 280 quilômetros por hora" que os vai fazer parar. Com informações da Lusa.