Secretária defende cloroquina e contradiz versões de Pazuello sobre tratamento e crise no AM
Conhecida como "capitã cloroquina", Mayra também apresentou versões que conflitam com as apresentadas à comissão na semana passada pelo ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello
© Leopoldo Silva/Agência Senado
Política MAYRA-PINHEIRO
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Em depoimento à CPI da Covid nesta terça-feira (25), a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, fez defesa ferrenha do uso da hidroxicloroquina, medicamento sem eficácia comprovada para tratamento da Covid-19, e admitiu que a pasta federal orientou médicos de todo o país para que adotassem o tratamento precoce.
Conhecida como "capitã cloroquina", Mayra também apresentou versões que conflitam com as apresentadas à comissão na semana passada pelo ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, em particular sobre a crise em Manaus e a plataforma TrateCov.
Mayra, que é médica, prestou depoimento munida de um habeas corpus concedido pelo STF (Supremo Tribunal Federal) que lhe garantia o direito de ficar em silêncio sobre os fatos de dezembro do ano passado e janeiro, quando houve o colapso do sistema de saúde de Manaus, na segunda onda da pandemia. Ela, porém, respondeu a todas as perguntas que foram feitas ao longo de quase oito horas.
Mayra é investigada em ação que corre em segredo na Justiça do Amazonas. Ela confirmou ter informado à Secretaria de Saúde do estado que era inadmissível não adotar a orientação da pasta sobre a utilização desses medicamentos -ineficazes no enfrentamento da doença, segundo estudos.
A secretária foi questionada sobre o tema pelo relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL). O senador leu trecho de um ofício encaminhado por ela ao Amazonas no qual estimulava a gestão municipal a usar as drogas orientadas pelo Ministério da Saúde.
"Aproveitamos a oportunidade para ressaltar a comprovação científica sobre o papel das medicações antivirais orientadas pelo Ministério da Saúde, tornando dessa forma inadmissível, diante da gravidade da situação de saúde em Manaus, a não adoção da referida orientação", diz trecho do documento lido por Renan.
Mayra ainda afirmou à CPI que a "orientação para tratamento precoce é para todos os médicos brasileiros, não só para Manaus".
Ela defendeu a hidroxicloroquina e disse que, como médica, mantém a orientação "de que a gente possa usar todos os recursos possíveis para salvar vidas". Por outro lado, afirmou que nunca recebeu ordens para propagar o medicamento. "Nunca recebi ordens, e a indicação desses medicamentos não é iniciativa minha pessoal,"
Ela depois ainda disse que a cloroquina e outros medicamentos foram criminalizados. "A gente teve um grande prejuízo à humanidade de pessoas que poderiam não ter sido hospitalizadas e não terem ido a óbito se a gente não tivesse criminalizado duas medicações antigas, seguras e baratas, que poderiam ter sido disponibilizadas e prescritas pelo médico", disse.
Divulgado como solução para a pandemia pelo presidente Jair Bolsonaro, o chamado tratamento precoce, que inclui geralmente cloroquina, azitromicina e ivermectina, não tem qualquer efeito, de acordo com as autoridades de saúde mais respeitadas no mundo, os países que combateram com sucesso o vírus e a comunidade científica.
Na CPI, a defesa da cloroquina feita por Mayra foi rebatida pelo senador Otto Alencar (PSD-BA), que é médico.
"Não tem nenhum estudo que possa demonstrar que foi feita a primeira, segunda, terceira e quarta fases. Além disso, doutora, todos esses estudos têm que ser acompanhados do ponto de vista farmacológico, farmacodinâmico e farmacocinético, para saber como a droga no organismo do paciente desenvolve sua ação. Hidroxicloroquina não é antiviral em estudo sério nenhum no mundo", afirmou.
"Essa insistência de permanecer no erro não é virtude, doutora, é defeito de personalidade. Não é da senhora, não, eu estou me referindo até ao presidente da República", completou.
A senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) questionou posteriormente se a secretária se incomodava de ser chamada de "capitã cloroquina".
"Não acho o termo adequado, porque não sou uma oficial de carreira militar. Sou uma médica conceituada no meu estado. Então prefiro ser chamada de Mayra Pinheiro", respondeu.
Em seu depoimento, a secretária também contradisse versões dadas por Pazuello, em especial sobre o colapso do sistema de saúde de Manaus. Apresentou, por exemplo, uma data diferente em que o Ministério da Saúde tomou conhecimento de problemas de falta de oxigênio, que resultou na morte de pessoas asfixiadas.
A secretária afirmou que o Ministério da Saúde soube dos problemas de escassez do insumo em Manaus por meio de um email da empresa White Martins, que havia sido repassado pelas autoridades locais para a pasta.
Ela negou que tenha sido informada do problema da falta de oxigênio no período em que esteve atuando em Manaus, em missão do ministério -Mayra esteve no estado de 2 a 5 de janeiro.
"Não houve uma percepção que faltaria. De provas, é que nós tivemos uma comunicação por parte da secretaria estadual que transferiu para o ministro um email da White Martins dando conta de que haveria um problema de abastecimento", afirmou.
"O ministro teve conhecimento do desabastecimento de oxigênio em Manaus creio que no dia 8 [de janeiro], e ele me perguntou: 'Mayra, por que você não relatou nenhum problema de escassez de oxigênio?'. Porque não me foi informado", disse à CPI.
Em depoimento à comissão, Pazuello afirmou que foi informado do problema apenas na noite do dia 10 de janeiro.
A CPI tem documentos que mostram, porém, que a White Martins enviou email à Secretaria de Saúde do Amazonas no dia 7 de janeiro no qual informou que não tinha quantidade suficiente de oxigênio para suprir a demanda do estado. No mesmo email, a companhia apontou o nome de outro concorrente, Carboxi, que poderia ter a carga necessária, segundo mensagem a que o jornal Folha de S.Paulo teve acesso.
Outra contradição da secretária diz respeito ao aplicativo Tratecov. Ela afirmou à CPI que a ferramenta foi alvo de uma extração de dados, e não um hackeamento, como havia informado Pazuello na semana passada.
Segundo Mayra, a constatação de que houve uma extração de dados foi o que levou o ministério a tirar a plataforma do ar, mas frisou que não houve alterações nele porque o sistema era seguro.
Já Pazuello disse que isso havia ocorrido em razão de um hackeamento e que o aplicativo havia sido manipulado.
"Ele [o hacker] pegou esse diagnóstico, botou, alterou, com dados lá dentro, e colocou na rede pública. Quem colocou foi ele; tem todo o boletim de ocorrência. Eu vou disponibilizar para os senhores", disse Pazuello.
Nesta terça, Mayra disse que o laudo da perícia no aplicativo mostra não ter havido hackeamento, mas que ele foi retirado do ar para que houvesse uma investigação.
"Ele não conseguiu hackear. Hackear é quando você usa a senha de alguém. Foi uma extração indevida de dados. O termo usado [por Pazuello] foi um termo de leigos", afirmou. "O que ele [a pessoa que inspecionou o aplicativo] fez foram simulações indevidas, fora de contexto epidemiológico", disse Mayra.
Segundo a secretária, o TrateCov servia como uma plataforma para auxiliar médicos no diagnóstico da Covid. De acordo com senadores, no entanto, o aplicativo também receitava cloroquina para crianças e adolescentes.
A fala sobre o Tratecov é uma das 11 contradições da secretária que foram apontadas pelo relator.
Renan também indicou uma declaração em que Mayra disse que não era possível prever a quantidade de oxigênio que deveria ser usado na crise em Manaus. Em outro momento do depoimento, Mayra afirmou que era, sim, possível fazer o cálculo por meio do prognóstico de hospitalizações.
No início da sessão, Renan provocou grande polêmica ao fazer um paralelo entre a situação atual da pandemia do novo coronavírus e o período do nazismo na Alemanha.
Renan citou o Tribunal de Nuremberg, que julgou dirigentes nazistas por seus crimes. "O tribunal da história é implacável", disse.
"Não podemos dizer ainda que houve genocídio. Mas podemos dizer que há sim uma semelhança assustadora, uma semelhança terrível, uma semelhança tenebrosa no comportamento de algumas altas autoridades que testemunharam aqui na CPI e o relato que acabei de ler sobre um dos marechais do nazismos no Tribunal de Nuremberg", afirmou.
A fala provocou reação imediada de senadores governistas, que afirmaram que haveria um pré-julgamento e um paralelo absurdo, segundo descreveu o líder do governo, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE). Houve um princípio de tumulto.
Durante o depoimento, a secretária foi elogiada por governistas. Fernando Bezerra disse que, se o tratamento precoce tivesse sido usado mais vezes, mortes poderiam ter sido evitadas, apesar da falta de comprovação científica sobre a diretriz.
Bezerra também afirmou que pode ter havido "atraso em algumas negociações" de compra de vacinas, mas que "não houve dolo, não houve negligência".
Já o senador governista Marcos Rogério (DEM-RO) afirmou que diversos estados têm protocolos para o uso da cloroquina, numa tentativa de tirar o foco do governo federal.
Após a oitiva da secretária, a sessão desta quarta-feira (26) será destinada à votação de requerimentos. O presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), afirmou que tem 402 pedidos na fila para serem apreciados, entre eles solicitações para convocar ao menos 12 governadores.