Magistrados deixam a toga e atuam em casos bilionários de recuperação judicial
Nos últimos quatro meses, o jornal O Estado de S. Paulo apurou episódios em que juízes pediram demissão para integrar bancas e consultorias que atendem empresas em dificuldades financeiras, cujos processos, pouco antes, tramitavam sob a responsabilidade dos magistrados
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Política CNJ
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instaurou procedimentos nos últimos anos para investigar a conduta de magistrados que conduzem ou conduziram casos de falências e recuperações judiciais. Em um deles, um juiz foi aposentado compulsoriamente em razão de uma suposta atuação irregular ao lado de um administrador judicial. Em outra, um magistrado teve de prestar esclarecimentos sobre sua relação com uma parte no processo.
Nos últimos quatro meses, o jornal O Estado de S. Paulo apurou episódios em que juízes pediram demissão para integrar bancas e consultorias que atendem empresas em dificuldades financeiras, cujos processos, pouco antes, tramitavam sob a responsabilidade dos magistrados. Os casos se referem a algumas das maiores recuperações judiciais do País. Segundo a Constituição, juízes estão impedidos por três anos de migrar para a advocacia nas comarcas em que atuaram.
Na pandemia de covid-19, 1,3 mil companhias recorreram à legislação falimentar do Brasil para enfrentar débitos classificados como impagáveis. A crise sanitária, na prática, aqueceu ainda mais esse segmento, marcado por disputas e denúncias de irregularidades. Há, de fato, muito dinheiro envolvido.
As maiores dívidas, porém, são de anos anteriores à chegada da covid-19. Envolvem empresas investigadas pela Operação Lava Jato, como Odebrecht, OAS, Sete Brasil e Oi. Juntas, chegaram a ter R$ 190 bilhões pendentes com credores.
A remuneração dos advogados é calculada sobre porcentuais dessa grandeza. São pagamentos legais, que atraem renomados escritórios de advocacia. Nas varas de recuperações, contudo, acusações de fraude e de má conduta de juízes e administradores indicados pela Justiça atraem a atenção de órgãos de controle e autoridades.
Ex-juiz de recuperações judiciais e falências de São Paulo, Tiago Henriques Papaterra Limongi deixou o Judiciário em maio de 2021. Foi integrar os quadros da Laspro Consultoria, do advogado Oreste Laspro, uma das maiores administradoras judiciais do Estado. O escritório cuida de casos de empresas, com dívidas bilionárias.
Maksoud
No mês seguinte à exoneração, Limongi compareceu, como representante do Laspro, à reunião relativa ao Hotel Maksoud Plaza, na capital paulista. O icônico hotel entrou em processo de recuperação judicial e foi vendido por R$ 70 milhões no ano passado. O processo tramita na 1.ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais, na qual o ex-juiz atuou.
Quando juiz, Limongi escolheu a Laspro para ser administradora judicial em pelo menos três processos que conduziu. Um deles, em 2020, refere-se ao Grupo Ricardo Eletro, que tinha R$ 4 bilhões em dívidas com credores. O escritório também é responsável pela administração judicial da Coesa, grupo que adquiriu o passivo da OAS - cuja recuperação judicial teve Limongi como juiz.
Ex-juiz da 2.ª Vara de Falências e Recuperações de São Paulo, Marcelo Sacramone deixou o Judiciário em junho de 2021 para se associar ao advogado Gabriel Orleans e Bragança. A banca defende clientes em processos da mesma 2.ª Vara.
O jornal O Estado de S. Paulo obteve uma procuração dada a Sacramone em novembro do ano passado para atuar na defesa do Banco Pan, na condição de credor do Banco Cruzeiro do Sul. Como juiz, Sacramone conduziu o processo de falência do Cruzeiro do Sul. Procurado pela reportagem, ele disse que deixou o processo.
Odebrecht
A maior recuperação judicial da história, referente aos R$ 98 bilhões em dívidas da Odebrecht, é conduzida pelo juiz João de Oliveira Rodrigues Filho. O magistrado é alvo de cinco ações do Banco do Brasil em razão de uma dívida de R$ 1,1 milhão. A instituição financeira também é credora de R$ 7,8 bilhões da Odebrecht, e, por consequência, parte na recuperação judicial. Segundo a lei, o juiz deve se dar por suspeito caso seja "credor ou devedor de qualquer das partes".
Em outro processo de recuperação de uma empreiteira da qual o Banco do Brasil é credor, um advogado mencionou a dívida do juiz, que suscitaria, em tese, sua suspeição.
O caso foi parar no CNJ. Segundo o conselho, juízes estão impedidos de julgar processos em que tenham dívidas com as partes.
Ao órgão, o juiz disse que se afastou do processo para defender sua honra, o que encerrou o procedimento. Na Justiça, ele pede que os processos do banco sejam colocados em sigilo. Rodrigues Filho foi alvo de outras seis representações no CNJ.
Aposentado
Nos últimos meses, a empresa aérea Ita, da Itapemirim, interrompeu suas operações, em razão de dívidas com credores. Desde 2012, o grupo - que chegou a operar a maior frota de ônibus do País - está em recuperação judicial. Atualmente, o processo está na Justiça paulista.
Começou, no entanto, no Espírito Santo, sob condução do juiz José Paulino Lourenço, que foi aposentado compulsoriamente pelo Tribunal de Justiça capixaba. Segundo as apurações da Corregedoria do TJ-ES, o filho de Lourenço teria uma espécie de "sociedade informal" com um administrador judicial que teria proximidade com juiz.
Em Goiás, uma suspeita de fraude de recuperação judicial foi parar na esfera criminal. Segundo o Ministério Público Estadual, uma recuperação judicial de R$ 250 milhões do Grupo Borges Landeiro, gigante do ramo imobiliário, não passou de uma "ficção" para enganar credores e sumir com o dinheiro que serviria para construir empreendimentos. Conforme a denúncia, o grupo induziu a Justiça a erro para esconder seu patrimônio de credores.
Até o momento, o MP denunciou 15 pessoas por fraude, e foram autorizados bloqueios de até R$ 500 milhões. Um advogado da equipe jurídica do grupo delatou todo o esquema, e entregou áudios e documentos ao Ministério Público.
TCU
Suspeita de conflito de interesses envolvendo ex-magistrados pautaram recentemente até o debate eleitoral. Em 2020, sete meses após deixar o Ministério da Justiça, o ex- juiz Sérgio Moro - pré-candidato do Podemos à Presidência - foi contratado pela Alvarez & Marsal.
Entre as empresas cujos processos têm o escritório como administrador, estão a Odebrecht e a OAS, dois dos maiores alvos da Operação Lava Jato, cujos executivos foram julgados por Moro.
O TCU passou a apurar o contrato de Moro com a consultoria. O presidenciável nega ter prestado serviço para empresas alvo da Lava Jato. Até agora nenhuma acusação formal foi apresentada contra o ex-juiz.
Ex-juízes afirmam que atuaram dentro dos limites legais
Os juízes e ex-magistrados defendem sua atuação e sustentam que atuaram dentro da lei. Tiago Limongi afirmou não ver conflito de interesses em sua relação com o escritório Laspro. "Quando das nomeações, a minha ida à Laspro não era sequer uma hipótese." Ele declarou que, em agosto de 2020, deixou a Vara de Recuperações para atuar na Fazenda Pública. "Já estudava me exonerar."
A Laspro afirmou que já atuava em recuperações "em inúmeras comarcas do interior antes dele atuar como juiz auxiliar". "A entrada de Tiago no escritório em nada altera nossa linha de atuação."
O ex-juiz Marcelo Sacramone disse que está impedido de advogar na vara onde foi juiz. "Descoberto o equívoco da juntada de substabelecimento padrão do escritório com a inclusão do meu nome em processo da 2.ª Vara, mesmo que eu não tenha tido qualquer tipo de atuação, houve a minha imediata renúncia."
O juiz João Oliveira disse não haver impedimento para julgar casos que envolvam o Banco do Brasil.
O advogado Cássio Rebouças afirma que o juiz aposentado José Paulino Lourenço é inocente e foi julgado "com base em presunções".
Segundo o advogado, Lourenço recorreu ao CNJ. O Grupo Borges Landeiro não se manifestou. Sérgio Moro afirmou que não prestou "trabalho para empresas envolvida na Lava Jato". "Os argumentos de que atuei em situações de conflito de interesse não passam de fantasia sem base."
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.