Kassio trava por dois anos ação contra farra de doações com emendas nas eleições
O processo judicial teve início em agosto de 2022 e já contou com os posicionamentos do Ministério Público Federal e da AGU (Advocacia-Geral da União)
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Política STF
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Está parada há dois anos no STF (Supremo Tribunal Federal) uma ação judicial que pode acabar com a farra de distribuição de máquinas, veículos e equipamentos em pleno ano eleitoral, até mesmo na véspera das votações, comprados com dinheiro de emendas parlamentares e entregues nos redutos políticos de deputados e senadores.
O processo judicial teve início em agosto de 2022 e já contou com os posicionamentos do Ministério Público Federal e da AGU (Advocacia-Geral da União), mas está sem andamento desde novembro de 2022 no gabinete do ministro do STF Kassio Nunes Marques.
Em outubro passado, a Folha de S.Paulo mostrou que só a estatal federal Codevasf havia distribuído produtos cujos valores somados ultrapassaram R$ 500 milhões antes das eleições municipais, em montante similar ao verificado no pleito de 2020 durante a gestão anterior de Jair Bolsonaro (PL).
Em 2024, as doações de máquinas, equipamentos e materiais pela estatal chegaram a R$ 547 milhões até o dia 14 de setembro.
No período das eleições municipais de 2020, no governo de Bolsonaro, a transferência de bens atingiu R$ 529 milhões, o que corresponde a R$ 572 milhões em valores corrigidos até o fim daquele mesmo mês.
Nas eleições gerais de 2022, as distribuições também ocorreram. Naquele ano, a Codevasf acelerou as entregas nas vésperas do pleito, liberando verbas a um ritmo de R$ 100 mil por hora.
O valor à época incluiu a doação de mais de 100 mil itens avaliados em R$ 247 milhões somente a partir de julho daquele ano, quando teve início uma série de restrições da legislação eleitoral.
A farra de entregas de produtos que pode desequilibrar as disputas eleitorais a favor de congressistas padrinhos de emendas e seus aliados foi turbinada por uma manobra jurídica em vigor desde 2022.
As leis eleitorais impedem a distribuição gratuita de bens e de serviços nos anos de votações, exceto nas situações de emergência ou de programas sociais já em andamento.
O drible no campo legal começou com um projeto de lei de iniciativa do Planalto, na Câmara dos Deputados, que tinha como tema o Orçamento federal de 2022.
Em sua tramitação, a proposta legislativa acabou ganhando um artigo que não tinha relação com seu assunto original, artifício que é chamado de "jabuti" no meio político.
Aprovado, o texto emplacou a orientação de que a doação oficial de bens em ano eleitoral é permitida desde que acompanhada de encargos aplicados aos beneficiados. Isso, em tese, afastaria a gratuidade das distribuições.
O "jabuti" foi proposto pelo deputado federal Carlos Gaguim (União Brasil-TO), ex-vice-líder do governo Bolsonaro na Câmara, e passou a compor a lei federal 14.435 de 2022, que entrou em vigor em agosto daquele ano.
Após a sanção de Bolsonaro, o partido Rede Sustentabilidade apresentou ação ao STF para pedir que o artigo relativo às distribuições fosse considerado inconstitucional.
"Trata-se, a rigor, de um benefício indevido dado a quem está de plantão no poder, que poderá se utilizar da máquina pública para fazer doações com caráter puramente eleitoreiro", segundo a petição do partido.
Na prática, para se aproveitar da brecha jurídica, a Codevasf passou a estabelecer espécies de "encargos" na documentação das doações.
Os papéis começaram a trazer cláusulas pelas quais as associações ou entidades beneficiadas deveriam pagar ou fazer algo em troca, como entregar polpas de frutas a instituições ou 5 kg de carne a uma escola. Há casos em que é exigido o pagamento de 1% do valor do veículo, máquina ou equipamento entregue.
Muitos dos documentos, tecnicamente chamados de "termos de doação", não escondiam que as novas regras tinham sido incluídas para driblar a lei eleitoral.
No Piauí, por exemplo, os termos da superintendência local eram expressos e citavam que, "em decorrência do ano eleitoral, estabelece-se como encargo para a doação a realização de um curso de associativismo/cooperativismo com o mínimo de oito horas aula".
No fim de setembro de 2022, a AGU sob Bolsonaro foi convocada a se manifestar no processo no STF e defendeu a medida.
"Em diversas ocasiões o Tribunal Superior Eleitoral entendeu que a contrapartida na doação descaracteriza a gratuidade. Desse modo, ao contrário do sustentado pela autora [Rede], a mudança questionada não gera desequilíbrio ao processo eleitoral, porquanto o aludido dispositivo possui caráter meramente interpretativo e corrobora entendimento já adotado pela Corte Eleitoral", alegou o órgão.
"De igual sorte, não existe ofensa à cidadania, ao pluralismo político e ao objetivo de construção de uma sociedade livre, justa e solidária", completou a AGU à época.
Já o procurador-geral da República à época, Augusto Aras, apresentou em novembro daquele ano uma manifestação com posicionamento contrário à nova regra.
"A norma introduziu mecanismo potencialmente desigualador do pleito eleitoral, violando o princípio da igualdade e os fundamentos constitucionais da cidadania e do pluralismo político", sustentou Aras na causa.
"A circunstância de o contrato de doação ser do tipo com encargo não altera a conclusão acima. É que o encargo consiste em elemento acessório do contrato de doação, não afastando sua característica de liberalidade (gratuidade)", escreveu o então procurador-geral da República.
Ainda em novembro de 2022, logo após a Procuradoria ter pedido a declaração da inconstitucionalidade da medida, o processo foi remetido ao gabinete do ministro Kassio, e não teve nenhuma movimentação desde então. O magistrado ocupa uma cadeira no STF desde 2020, quando foi indicado ao cargo por Bolsonaro.
O partido Rede Sustentabilidade criticou a paralisação do processo por dois anos por meio de nota assinada pelo porta-voz da legenda, Wesley Diógenes.
"O prolongado lapso temporal entre o protocolo da ADI 7220 e a ausência de decisão final representa um fator de insegurança jurídica no processo eleitoral", segundo o partido.
"A demora em uma definição sobre o tema permite que gestores que buscam a reeleição utilizem-se das doações como instrumento de favorecimento eleitoral. Tal prática compromete a isonomia entre os candidatos e afeta diretamente a legitimidade do resultado eleitoral", de acordo com a legenda.
A reportagem procurou o ministro Kassio por meio da assessoria do STF. A coordenadoria de imprensa do tribunal enviou email à reportagem no qual afirmou que o ministro "não pode se pronunciar sobre um caso que ainda será analisado" e que "o processo é público e seu andamento pode ser acompanhado".