Vencedora do Jabuti, Cida Pedrosa une o épico com a cultura popular
De partida, o poema-livro formula uma versão sertaneja de Brasil, ao pôr em foco a violência com indígenas e negros no Nordeste
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Cultura LIVRO-CRÍTICA
FOLHAPRESS - Ao longo dos últimos anos, incluindo o fatídico 2020, tem surgido no Brasil uma produção riquíssima de livros de poesia. Parece que o gênero –nas suas mais diversas manifestações– tem conseguido nomear feridas sociais, elaborando o luto do tempo difícil em que vivemos.
Nesse sentido, não é surpresa que o grande vencedor do prêmio Jabuti deste ano tenha sido o livro "Solo para Vialejo".
Nele, a pernambucana Cida Pedrosa não traz uma versão cômoda da poesia como gênero. Ao contrário, ela a perturba, fazendo cruzar, de modo singular, registro épico, poesia visual e cultura popular.
De partida, o poema-livro formula uma versão sertaneja de Brasil, ao pôr em foco a violência com indígenas e negros no Nordeste. E aos poucos os versos vão se concentrando na travessia do litoral até o sertão.
Justo esse foi o percurso da população nativa ao fugir dos colonizadores, numa viagem que deixou rastro para que os negros também pudessem escapar. Diz o poema que "um deus branco e cruel que nos fez desejar/ caminhar em romaria rumo ao sertão".
E quando tal deslocamento é pensado em meados do século 20, o sertão de Pedrosa se materializa em Bodocó, cidade natal da poeta, que passa a ser também uma espécie de alegoria do país.
Uma vez lá, os versos misturam as perspectivas coletiva e individual da personagem da autora, sempre privilegiando o ponto de vista múltiplo. E tal pluralidade se dá tanto nos registros –do prosaico à experimentação sonora– quanto na diversidade dos focos de enunciação.
Por falar em vozes, vale destacar a presença das muitas referências musicais, que, ao fim, constituem um grande acervo montado pelo livro. Povoam suas páginas Luiz Gonzaga, Etta James, Jackson do Pandeiro, Robert Johnson e também Mãe Hermínia, parteira da cidade que dedilhava a "Ave Maria" de Schubert nas missas.
Vale dizer ainda que "vialejo" é o nome da gaita que a poeta ganhou do pai na infância, mas que nunca aprendeu a tocar.
Partindo assim na direção das narrativas individuais, o papel central da música acaba por dar a ver a virada memorialística dos versos. Não à toa, o Clube Sociedade União Bodocoense, com suas festas e causos, se torna epicentro do poema.
Aliás, uma das histórias da cidade se refere justo à capa do livro, que traz uma foto antiga da Jazz-Band União Bodocoense. A autora se lança em busca de descobrir e homenagear os músicos ali presentes -"quem são estes cavaleiros do/ apocalipse new andarilhos de rostos/ apagados silenciados nas lembranças/ de uma cidade sem presente."
A poeta esbarra, no entanto, nos limites da história oficial. Estão documentados os nomes dos músicos brancos, mas não o dos negros. "Cadê a linhagem dos negros que tocavam banjo?", pergunta a poeta, e sua pergunta ecoa a rasura a que é constantemente submetida a memória da população negra no país.
Pensando nisso e na estrutura musical do livro, é interessante destacar que o início do poema retorna diversas vezes, se metamorfoseando ao longo das páginas. "Parto em busca de ti// negro ser" que vai se tornando apenas "negro ser". Refrão que depois é repetido insistentemente até dizer "ser negra".
A simples mudança de lugar do vocábulo "ser" também é uma mudança da classe gramatical que faz com que, no livro, a palavra "negra(o)" deixe de ser exclusivamente um estado e passe a ser também uma ação. Tanto uma tomada de consciência do poema, quanto um desejo de projeto de país.
SOLO PARA VIALEJO
Preço R$ 25
Autor Cida Pedrosa
Editora Cepe
Avaliação Ótimo