Karim Aïnouz em Cannes reflete sobre sua origem com 'Marinheiro das Montanhas'
4 - Karim Aïnouz em Cannes reflete sobre sua origem com 'Marinheiro das Montanhas'
© Getty Images
Cultura CANNES-FESTIVAL
HELEN BELTRAME-LINNÉ
CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) - Karim Aïnouz volta a Cannes dois anos depois de sua consagração na mostra Um Certo Olhar com "Marinheiro das Montanhas", um documentário pessoal exibido em sessão especial.
Mas se engana quem pensa que o projeto é completamente diferente de "A Vida Invisível". Os dois filmes, juntamente, compartilham um DNA feminino. Ambos evocam de alguma forma a criação de Aïnouz em Fortaleza, completamente rodeado de figuras femininas -a mãe, a avó, as tias.
"Marinheiro" é uma espécie de road movie pessoal do diretor, que em 2019 viajou de Marselha até Argel de barco, para então avançar pelo interior do país num carro alugado em direção ao vilarejo natal de seu pai, numa região montanhosa da Argélia.
Essa mesma viagem já havia dado origem a "Nardjes A.", exibido no Festival de Berlim no ano passado. Também um documentário, o primeiro filme enfocou o clima revolucionário que Aïnouz encontrou na capital Argel, tomada por protestos contra o presidente Bouteflika, que está há 20 anos no poder e iniciou seu quinta mandato no cargo.
O novo documentário de Aïnouz enfoca aspectos pessoais -é feito na forma de carta à mãe do cineasta, morta no ano passado- mas também passa pela questão política. Seu pai argelino deixou o país para fugir da guerra e voltou ao país com a promessa de um dia trazer de Fortaleza, para junto de si, Iracema, a mãe do cineasta, e o pequeno Karim.
Usando imagens de arquivos pessoais e novo material filmado na viagem, o filme é uma reflexão sobre sua origem, os rumos que a vida toma e uma tentativa de se reconectar com uma parte de sua história fantasiada por mais de 50 anos.
Desde o início, Aïnouz se dirigie à mãe, num diário de viagem que escreve na forma de carta, mas parece que sua câmera busca a figura paterna. Na Argel que o diretor nos apresenta, quase não se vê mulheres, talvez recolhidas ao ambiente doméstico do conservador país muçulmano. Contudo, o quadro de homens e meninos vai sendo colorido aos poucos, culminando na energia de mulheres do vilarejo natal e na garota Ines, que se mostra tão reveladora para o diretor.
Essa ambiguidade é constante no passeio proporcionado pelo filme. Aïnouz fala o tempo todo com a mãe, mas o tempo todo busca esse pai sobre quem fantasiou por tanto tempo. Ele faz uma ode ao mar, mas a primeira coisa que faz ao chegar de barco a Argel é tomar um banho "para tirar o sal do corpo".
Aïnouz busca a sua montanha de origem e quando encontra o seu duplo –um homônimo que nunca saiu dali– chega a sonhar com um futuro naquele lugar. "Vou plantar uvas, fazer vinho e abrir uma boate."
Ele tenta se misturar aos locais –corta o cabelo como eles, na tentativa de se camuflar. No entanto, assim que chega no cemitério local e se vê cercado dos numerosos túmulos de seus parentes, todos marcados Aïnouz, ele foge sem se despedir de ninguém. "Tive medo de cair numa daquelas tumbas e nunca mais sair daquelas montanhas."
De volta ao mar, ele embarca novamente no barco que o trouxe, mas tomado pela febre típica dos marinheiros que chegavam aos trópicos. Aquela que os fazia imaginar que o mar era um grande prado com árvores, onde eles se jogavam sem hesitação para alcançar um lugar que não fosse aquele barco cercado de água.
Aïnouz não se joga ao mar, nem se deixa abandonar na montanha. Ele chega ao final da viagem com um filme afetuoso, recebido com carinho pelo festival que o acolhe há anos.