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Malcolm Gladwell faz seu melhor livro em anos, 'A Máfia dos Bombardeiros'

Em seu mais recente livro, porém, ele deixa de lado sua fórmula de sucesso para contar uma única história, à primeira vista uma simples nota de rodapé tecnológico-militar da Segunda Guerra Mundial.

Malcolm Gladwell faz seu melhor livro em anos, 'A Máfia dos Bombardeiros'
Notícias ao Minuto Brasil

11:48 - 21/03/22 por Folhapress

Cultura LIVRO-CRÍTICA

(FOLHAPRESS) - Generalizações ousadas a partir de dados díspares costumam ser o cerne dos best-sellers de não ficção do canadense Malcolm Gladwell. Em seu mais recente livro, porém, ele deixa de lado sua fórmula de sucesso para contar uma única história, à primeira vista uma simples nota de rodapé tecnológico-militar da Segunda Guerra Mundial.

O resultado é de um frescor inegável, talvez seu melhor trabalho nos últimos dez anos. A obra nasceu como um audiolivro e só mais tarde passou ao formato tradicional, mas não se vê sinal algum de falta de fluidez quando é lida na versão em papel -a velha segurança narrativa de Gladwell continua intocada em ambos os meios.

"A Máfia dos Bombardeiros" investiga o nascimento dos ataques aéreos de precisão –aquilo que iria culminar nas "bombas inteligentes" e nos drones mortíferos da Guerra ao Terror no Iraque e no Afeganistão. Do ponto de vista desta terceira década do século 21, a ironia é cruel, mas o fato é que os criadores do conceito, nos anos 1930 e 1940, pareciam genuinamente interessados em salvar vidas. Sério.

Era isso o que estava na cabeça de gente como o inventor holandês naturalizado americano Carl Norden, morto em 1965. Excêntrico, perfeccionista e cristão devoto, ele foi responsável por criar a mira de bombardeiros que levava seu nome.

A engenhoca, que pesava 25 quilos e incluía um complicado sistema de rolamentos que fazia dela um dos primeiros computadores analógicos da história, seria capaz de "acertar um barril de picles [com o avião voando] a 9.000 metros de altitude", diziam na época.

Até então, se tratava de um nível de precisão impensável. A tecnologia aeronáutica das primeiras décadas do século passado simplesmente não tinha como levar em conta fatores como a altitude, a velocidade do vento e o movimento da Terra para permitir que bombas lançadas por aviões atingissem apenas os alvos selecionados pelos estrategistas militares.

Sem qualquer método confiável para mirar, a utilidade bélica das aeronaves se resumia a missões de reconhecimento, duelos individuais entre pilotos habilidosos –ou então a campanhas de terror, nas quais os bombardeiros eram usados para destruir cidades e a população civil de forma indiscriminada.

Foi contra isso que se insurgiu a máfia do título do livro -um grupo de jovens aviadores do Exército americano (a Força Aérea, enquanto instituição independente, ainda não existia).

Eles passaram a conceber os ataques pelo ar como um método relativamente menos sanguinolento de vencer guerras, conforme os anos 1930 se encaminhavam para seu fim e a sombra de um novo conflito mundial, associado à ascensão do nazismo e do fascismo, crescia na Europa.

Os visionários da chamada máfia dos bombardeiros enxergavam a guerra moderna por um prisma essencialmente industrial, de olho nas cadeias de insumos que faziam rodar as engrenagens bélicas do inimigo. Afinal de contas, raciocinavam eles, não é possível manter uma ofensiva sem combustível para abastecer os tanques, ou sem metais para repor as carcaças dos veículos blindados que forem sendo abatidos em combate.

Portanto, se houvesse uma maneira de decapitar diretamente os centros vitais de produção de armamentos do inimigo, a guerra estaria ganha sem a necessidade de dizimar soldados a golpes de baioneta ou cidades inteiras com canhões e bombardeios. Quando a Segunda Guerra Mundial foi deflagrada, e os Estados Unidos, após alguns anos de hesitação, acabou entrando no conflito, a mira desenvolvida por Norden parecia uma oportunidade de ouro para pôr isso em prática.

Como quase todo mundo sabe, porém, na prática a teoria é outra. A supermira de Norden nunca chegou nem perto de atingir o tal do barril de picles.

Para tentar pôr em prática o conceito da guerra aérea de precisão na Europa, os oficiais americanos precisaram enfrentar a resistência de seus aliados britânicos, cujo comando defendia a destruição indiscriminada de cidades alemãs como forma de acabar com a moral do inimigo.

(Outra ironia cruel aqui é que a Alemanha nazista tinha tentado aplicar a mesma estratégia, sem sucesso, em seus ataques aéreos ao Reino Unido anos antes, mas os britânicos pareciam acreditar que o que não funcionara com eles seria suficiente para dobrar os alemães.)

Mesmo perdendo uma proporção colossal de seus bombardeiros, os líderes da aviação americana mal arranharam os centros vitais do esforço de guerra alemão. A situação ficou ainda pior quando o teimoso e idealista brigadeiro-general Haywood Hansell Junior decidiu aplicar a mesma abordagem à tentativa de atacar diretamente o Japão, aliado dos alemães no Pacífico.

Ao pesadelo logístico de atingir as ilhas japonesas após voar milhares de quilômetros pelo oceano se somou um detalhe até então desconhecido do funcionamento da atmosfera. Era a presença de uma das chamadas correntes de jato -um "Amazonas" de ar circulando a cem quilômetros por hora e a altitudes entre 9.000 e 12 mil metros- justamente em cima da área do Japão considerada prioritária para os bombardeios de precisão.

Resultado -a supermira, mais uma vez, se revelou inútil. Hansell Junior foi substituído por um oficial cruelmente pragmático, o major Curtis LeMay, e os bombardeios do Japão se transformaram numa clássica campanha de terror, impulsionada por outra invenção recente -um explosivo grudento apelidado de napalm.

Para não dizer que falta ao livro uma grande tese unificadora, tal como as de outras obras do jornalista (a importância da decisão instintiva e momentânea em "Blink"; as pequenas coisas que fazem uma grande diferença em "O Ponto de Virada"), a leitura de "A Máfia dos Bombardeiros" também traz uma grande lição, ainda que implícita -e até mais sólida que a dos volumes anteriores.

É a ideia de que a única lei da história humana é a lei das consequências não pretendidas. Organizações e tecnologias inovadoras tendem a desencadear forças difíceis de controlar, cujos efeitos podem ser muito diferentes dos imaginados por seus criadores, ou mesmo opostos a eles. Ter isso em mente talvez seja um ótimo caminho para evitar que a nossa espécie continue se enfiando em becos sem saída que ninguém tinha conseguido imaginar antes.
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A MÁFIA DOS BOMBARDEIROS
Preço: R$ 49,90; R$ 29,99 (ebook); 227 págs.
Autor: Malcolm Gladwell
Editora Sextante
Tradução: Carolina Simmer
Avaliação: Muito bom

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